sábado, dezembro 30, 2006

parece clandestino

Parece clandestino deslocado
o tempero do amor que nos anima
coisa de loucos de famintos
de poetas sonhadores
de bizarros dançarinos
náufragos de um tempo sem valores

quem quer comer come e pronto
diz quem sabe
pede a conta paga vai embora
não tem tempo para dançar
mimar sorrir experimentar
fazer caminho

porquê gastar tempo sem usar
cansar-se transpirar expor-se a julgamentos
se abundam mulheres fáceis homens também
mesmo à mão de semear

se tudo flui ao ritmo esperado
nas ruelas circundantes
come-se e bebe-se compra-se e vende-se
em prazer fácil e oferecido
basta tirar do bolso a nota da carteira

elefante branco bar catedral prazer
século vinte e um
porque não entramos
porque não compramos
porque não nos serve esta “normalidade”
da vida de qualquer cidade
da vida de qualquer um

elefante branco sexo e companhia
aos teus olhos parecemos anormais
só dançamos só sorrimos
depois ficamos num espaço tribo
pé descalço
índio fogo cambaleante
e partimos como chegámos
nem vendemos nem comprámos
nem comemos nem bebemos
nem perdemos o tino nos copos

parece mesmo clandestino
este estranho amor com alma sem cobrar
com ritmos e gestos intrigantes
comportamentos preocupantes

mas há raízes e sons que incendeiam
momentos primitivos céu e terra tão bonitos
fogo e noite lua cheia
mar e ar e seres deslumbramento
que valem mais que vómitos diarreias
orgasmos pagos anedotas de banquete

corpo sem alma é pouco meus senhores
e em vez de troça chacota desconfiança
fica o convite
juntem-se a nós com corpo e alma
dancem sonhem
que a dança e o sonho levar-vos-ão ao paraíso

senti-me Camões Lusíadas canto IX


Abrandava a luz na música que ouvia
no lugar onde estava
os olhos emoção cerrados
faziam noite
e eu crescia no pequeno espaço

esticava os braços e conseguia atravessar o tecto
ou quase
depois descia
flectia as pernas
aguentava um pouco
as mãos pareciam asas
seguravam-me porque eu tremia
quase caía

depois deitava-me
terra chão exausto
em queda quase morria
mas o núcleo vida mexia
eu respondia rastejava rebolava
repelia o medo da vertigem na viragem

senti-me náufrago um tempo
braço Camões clamando salvação
ali num sítio sem ninguém
era um mar noite vendaval
e o movimento que fazia esgotava-me

um corpo salvação que aparecia e que ainda agarrei
descolava da minha mão
eu continuava esbracejava
já quase desistia na solidão de um mar assim
porém enquanto tábua salvação fugia
desolação

atrás de mim
(já em dor e sem esperança)
ninfa deusa mulher apareceu
levou-me dali mostrou-me o céu que merecia
e estive nele até que ela quis

senti-me Camões Lusíadas canto IX
ilha tropical em plena tempestade
depois de Adamastor e Cabo das Tormentas
o colo bom a terra mãe
o descobrimento o prémio o continente

Brasil de Álvares Cabral Índia de Gama

grato por estar aqui neste mar revolto
e por estares aqui também esta noite
por me salvares e por salvares o poema
e ter vivido Portugal um pouco em ti neste lugar

em torno da fogueira


Abanava em torno da fogueira
amparado pelos outros
que me entalavam ondulando
em aperto bom e uterino

eu nu e pequenino encarnado e roxo

era assim que me sentia
em cordão umbilical que me prendia
a um círculo terno e apertado
ao calor do fogo da fogueira
aos corpos bons e quentes que sentia

de olhos semicerrados
a boca escancarada
eu tremia no escuro abraçado e dado

o som exterior ao círculo
que se ouvia
era exótico forte intenso
integrava as origens nos sentidos
sacudia excitava fazia suar
batuque selva serpente
nesta floresta de gente
que em dança movimento lento
subtil ritmado encostava

o meu corpo lá ia
o fogo apertava
o tronco abanava as mãos aqueciam
pousadas na noite macia do corpo mais próximo

a boca fendia entrava em ruptura
a carência existia
uivava gemia escancarada
no som das raízes
no amparo tribal
que bom que seria um seio um falo naquele lugar

perdida no embalo
pedia um amparo
uma seiva sadia
um beijo e um leite um vínculo
um cordão umbilical
que a alimentasse para sempre

deus sol

Pela regulação da vida que fazia
pela energia que trazia
pela luz fonte de vida que é
também porque outros acreditavam
ainda tive uma grande adoração
por esse astro rei
o sol

era mais uma adoração...zinha
confesso
mas se não fosse
e de verdade acreditasse
num sol deus
deus verdadeiro
hoje teria definitivamente
abandonado a minha crença

porque está um dia lindo de morrer
há a luz e o calor de agosto
e é verão
mas o sol não nasce para todos
como sempre ouvi dizer
é só sol e nada mais

porque se nascesse para todos
e fosse deus
teria olhos para ver
teria uma mão estendida a cada vida
neste bairro pobre
neste pedaço de charco sem saída
com meninos tristes
e fome muita fome
também droga

aqui não entra mesmo a tua luz ó sol
é sempre noite
e tu não vês

o sentido das coisas

As coisas todas têm o sentido que têm
apenas esse
nós é que lhe queremos dar outro
que sejam diferentes
melhores
mais ao nosso jeito
que nos agradem se possível cem por cento

como as pessoas
só lhes apontamos os defeitos
ou as virtudes
conforme o desagrado
ou o agrado que sentimos

não somos perfeitos
e exigimos dos outros perfeição

cada um é como é
vale o que vale
nem mais nem menos
não há medida que meça uma tal valia

e viver na ilusão de algo que não existe
a não ser na imaginação
ou numa inteligência curta
é deixar de ver o que se pode ver
e desistir de entender
não uma pessoa
mas o próprio mundo
e toda a gente

é ficar tão limitado de visão
que nos arriscamos a uma total solidão
num mundo abstracto
que existe só
num qualquer dicionário
egoísta e mentecapto da memória

coração inquieto

Se tivesse que apontar
uma devoção imediata
"o caminho a estrada"
seriam a escolha acertada

coração inquieto
procuro sempre outro lugar
além deserto
onde não tenha necessariamente que ficar

na mochila
uma mão cheia de sonhos
partir partir

haver sempre algo a descobrir
algo para ver
não ser eu um lugar parado
um círculo fechado
um papel social atribuído

porque o que estraga mesmo
é ter a cabeça cheia e não poder remar
é madrugar com horizonte
e dar comigo enrolado
encaminhado
enlatado
num ar viciado
numa vida sem sentido
ou apenas com o sentido dos outros

e que me quer convencer
que para lá do convencional
não há mais nada

eu
como não acredito nisso
sofro
mas não desisto de caminhar

suave momento

O prazer que dá
sentir o lugar
e o tempo exacto do lugar
a percepção perfeita
de que se absorve tudo
e não se domina nada

nem para a frente
nem para trás

"aqui e agora"

instante conseguido inconsciente
da recepção do mundo

sente-se o chão
e a semente
nada e tudo ao mesmo tempo
e momentaneamente
o "eu" existe ali

quando se consegue esta proeza
no espírito confundido
perturbado
num mundo agitado

a própria respiração
aconchegada ao coração
sabe tão bem
que apetece ficar ali
eternamente

terça-feira, dezembro 19, 2006

caminho de mudança

Não é desistir
parar
baixar os braços
isso não
que a vida é caminhar
sentir o tempo e o lugar
e o que se tem

de forma a perceber
o que a vertigem não deixa
e desfrutar com intensidade
o que há para desfrutar

se parecer por acaso
que não há nada ali
no sítio que encontrámos
primeiro confirmar
porque não foi por acaso que o achámos

só depois
feitas as contas
entre os prós e os contras
os sim's e os não's
e se nos pratos da balança
o desequilíbrio for grande
e não der para aguentar

coragem companheiro
porque o tempo é tempo de mudança
e só te resta continuar

ou parafraseando o poeta
"emalar a trouxa e zarpar"

rua escura ângulo recto

Tinha visto a publicidade
era ali a porta
rua escura ângulo recto
música ritmada que saía
piso superior encontro breve
em esperança sábado ilusão de felicidade

parei num espaço arrumando o carro
tentei entender-me a mim
o sítio
e o que o sítio queria de mim

havia alguma gente
percebiam-se encontros fortuitos
outros não
na porta de entrada mais iluminada
que a penumbra exterior

auscultei-me por instantes
os olhos fixavam e fugiam
iam ao fundo da rua
depois recolhiam

e no fundo de mim uma onda crescia
do estômago à garganta dor de dúvida
do não saber o que se quer
se espreitar entrar arriscar
um passo uma coragem
no som musical abraço sexo

ou ficar

senti-me ponto de embraiagem na subida
nem para a frente nem para trás
paralisado

os olhos eram mais vistos do que viam
a dúvida o medo punham-me pequenino e magro
em carro de alta cilindrada
imobilizado

só reparei com o reflexo da mão
chave rodando a ignição
que era o regresso
a resposta encontrada para aquela situação
evitar o muro a ponte o lado de lá

afinal sempre havia um jogo de bola na tv
e a mão sabia disso
do meu medo e do jogo de bola da tv
quando num ápice rodou a chave da ignição
e me pôs a salvo no sofá
entretido e sem esforço

sábado, dezembro 16, 2006

casório principesco

Não sei que contas fez tia Ermelinda
que conheci sempre rotinha
e sem cheta
pedindo favores de porta em porta
ou fazendo umas limpezas
por especial favor do presidente
nas retretes públicas e anexos da câmara

um dia destes
veja-se a vistaça
sem qualquer contenção
e todo o destempero
tia Ermelinda convidou trezentos figurantes
para o casamento do filho
um engenheiro com um curso universitário
de não sei que universidade
mas que tem a ver com cavalos

casou o senhor engenheiro
com pompa e circunstância
a vila e a igreja engalanadas
automóveis camionetas
a perder de vista
nem faltaram para ajudar à festa
artistas de grande nomeada

e apesar da figurinha patética do engenheiro
do bizarro extremo que a situação encerra
não deixou de incomodar a "inteligentia" da terra
que com muito mais miolo e pergaminhos
não conseguem a proeza menor
de levar a filha ao casório pelo civil

pois pasme-se só

filhinhas educadas muito queridas e prendadas
se sentem melhor à experiência
e de preferência
em apartamento alugado
com o dinheirinho dos pais

tia Preciosa

Queixosa estava sempre tia Preciosa
mal se endireitava
o frio do nordeste em terras de Aquilino
acabava-lhe com os ossos e com o resto

foi assim que a deixei vai para um ano
a mulher dos queijos
como era conhecida

ela era a parte trágica da vida
solidão doença
limitação de se valer
e afirmei preocupado no regresso
que tia Preciosa não aguentaria outro inverno

não foi assim
volvido um ano em nova romaria àquelas bandas
e para espanto meu
tia Preciosa ressuscitara
os filhos acertaram no remédio
lar de dia
e televisão
(logo três uma em cada divisão)

e a vida dela
triste e amargurada
virou em correria
no lugar da serrania

de manhã vão buscá-la de carrinha
dá à língua
e lá para a tardinha
deixam-na de novo na casinha

e trote trote
num tal virote
vai de televisão em televisão
espreitar as telenovelas que pode

eis que o milagre aconteceu

histórias tristes
de lobos ovelhas e defuntos
missas e invernias
de índole local
cederam lugar
a histórias modernaças
de risos tonterias e enredos tais

que bem pode dizer-se
que tia Preciosa se inseriu
definitivamente
no contexto da aldeia global

sexta-feira, dezembro 15, 2006

juventude perdida

Era jovem quando eu a conheci
pretendida por cem talvez por mil
todos tentavam a sua sorte no olhar meigo que oferecia
nos atributos escondidos que só a boa educação que tinha
não deixava ver

a Tilinha não podia dar mais do que oferecia
eram tempos de clausura e o que fazia às escondidas
um beijo furtivo
um apertãozinho
um ceder pouco com medo de ceder
fizeram dela uma boneca inútil
sem sexo nem afecto
desempenhando um papel de contenção
depois esposa fiel
rendida a um casamento que acabou com ela

com tanta contenção numa juventude tão bela
tão burguesmente apetecida
num olhar que prometia tanto
e não dava nada
não me admirou
quando um amigo há dias me contou
que ela

essa menina prendada
filha de família
agora na casa dos cinquenta
se entregara
farta de fingir e sobretudo revoltada
a um jardineiro ucraniano
contratado pelo marido
(industrial português bem sucedido)

ondas más

Nada se passou
o telefone não tocou
a vida está igual
aqui dentro e lá fora
nem o barulho aumentou
nem a luz
nem as características do lugar

e que ondas aconteceram em tão pouco tempo
que tudo se alterou
especialmente a perspectiva de ver
e de sentir
e de ter lógica

deve ser qualquer coisa de imperceptível
forte
que nos atravessa o ânimo
e vira tudo do avesso

o amigo passa a inimigo
o racional deixa de existir
(como os automobilistas nas ruas
da cidade
que se insultam
e se agridem
por quase nada)

mas é pior que isso
porque tudo seca quando é assim
não há afecto nem ponta de razão
que salve a situação
e nada cai do céu
como uma varinha mágica

vemo-nos sós
e sem nenhuma solução

creio que em tais situações
o melhor é mesmo esperar
e ter fé que a onda passe

horinha predilecta

Se eu pudesse
e tu deixasses
fazia de ti a minha horinha predilecta
a minha confidente
o meu lugar secreto
o meu presente permanente

onde tu estivesses
o que eu te desse
e o que tu me desses
haveria de ser tanto
e o tempo ser tão pouco
que a vida entraria em défice de tempo

seria tão rápida a vertigem
o enlace tão total
que antes de todo o bem real
e o mal real
(coisas que a vida quando dura tem)
chegassem

a corrida já teria chegado ao fim
sem nos darmos conta disso

tornarmo-nos pessoas

Eram palavras demais para sairem
as ideias com a fartura engasgavam
o suor e as lágrimas corriam
pela face do homem que não se fazia ouvir

ninguém dava conta disso
nem tinha importância
o tempo era mais de falas corriqueiras
de sorrisos ocos
de fato e de gravata
tudo para fazer de conta e compor a imagem
porque só importava o que fosse mediático

quem perdesse tempo com ele nunca iria longe
nem ganharia glória ou uma brilhante carreira
muito menos honrarias de primeira página

como aquele homem sofria
porque entre o que sentia e o que via
era o abismo
entre o que queria para os outros
e o que podia dar
um impossível de alcançar

como não se achava com jeito para por gravata
como lhe faltava berço para o consolar
como o mundo era pequeno demais e não cabia nele
como ninguém o ouvia
acabou por se suicidar

desse homem apenas ficou um livro
não se lhe conhecia família

cão faminto

Neste horizonte morno
quase sinto o aroma dos teus seios
e o cheiro todo do desejo
que o teu corpo inspira

cubro de música o ar que me separa de ti
e vou no vento
que perturba o equilíbrio do carro
e o meu

não descubro nada
nem consigo pensar em nada

tinha até previsto
aproveitar a solidão de um dia destes
para falar com deus
mas não consigo
é forte de mais a obcessão

e a mente deforma a maneira de ver
quando se está sensível
e eu estou sensível
(sensível e obcecado)

apenas tenho a consciência exacta
de que a minha vida se tornou
numa fuga dela
quando vou no vento e fujo para ti

se ao menos estivesses lá quando chegasse
ou te encontrasse
se ao menos saciasse uma vez que fosse a minha fome
talvez algo mudasse
talvez sentisse
que se pode petiscar neste pomar
e então seria grato

mas não

o caminho que levo é o caminho que trago
qual cão faminto sem osso para roer
sem carne para comer
sem rosa para cheirar

sou tempo que já não se encontra neste tempo

ou viro a página definitivamente
ou desacerto de vez

história de amor inédita

Gostava de te dar beijinhos
de trocar amor com amor
com mil carinhos
ficar tonto sem preconceitos
enredar-me contigo
numa história inédita

que fosse tema de cinema
que inspirasse tese de doutores
que saltasse fronteiras
que levasse ao rubro
o anémico e o casto

uma história que se escrevesse
com empolgantes golpes de magia
que desafiasse tudo em ousadia
o ocaso inevitável do sol
o cair da noite
o nascer do dia

e trocasse as voltas a tudo
ao tédio
ao ódio
à maneira como se vêem as coisas
ao colorido que não tem necessariamente de ter cor

uma história invulgar
não importava o tempo
mas que só acabasse
se um de nós quisesse
ou se a guerra
ou uma qualquer morte
a matasse

beleza e movimento

Faz-te mal a ti
a quem gosta de ti
a quem te entende
ficares assim a fazer de conta
que és o que não és

por fora
basta olhar
seja quem for
deixar tombar o olhar muito simplesmente
sobre ti
e logo vê que és verdadeiramente linda

devias ser tenista
bailarina
corredora
qualquer coisa que te pusesse em movimento

quem tivesse de te amar
amar-te-ia assim
o corpo a vida o sonho
uma escultura livre como um voo de ave
solta e linda
iria atrás de ti como quem nasce todos os dias
e viveria eternamente num conto de fadas

recanto de memória

Pousei num sítio novo
tão novo que nunca o tinha visto
(assim como nos sonhos)
havia gente
bastante gente mesmo tendo em conta a dimensão do lugar

era verão e estava um sol que fervia
o pó seco levantava com o alvoroço
e com o vento
que dava ao lugarejo
(ainda hoje dá)
um panorama
desolado
de extrema solidão

havia uma ponte nova
com festa de inauguração
essa a razão por eu estar ali e os outros

mal via a ponte porque era pequenino
e também não era importante vê-la
agarrava-me o tempo de uma margem
que não entendia
alguns adultos pisavam-me
com uma dor que doía
e que ficaria para sempre

só mais tarde compreendi o importante que foi aquela ponte
quando na outra margem vi
com olhos de ver
pela primeira vez aparecer
o meu pai
céus que de tanto olhar quase fiquei sem ver
as nuvens de pó cobriam toda a gente
não sabia se estava vivo se morri

não amei tudo porque não sabia amar
não me dei todo porque tinha medo de me dar
não gritei de felicidade
porque tinha medo de gritar

mas compreendi
naquele fim do mundo
em Barca d'Alva
numa inauguração de uma qualquer ponte
que mal sabia para que servia
que o meu pai
era a pessoa mais importante que havia

domingo, dezembro 10, 2006

um anjo

A vida passa
o dia a dia mói a paciência
o virtual é a ausência presente decretada
a dor o medo a solidão existem mesmo

mas de repente
como intervalo em pesadelo
um rostinho frágil e aberto
lindo
fica ali à minha frente

entra por mim a dentro
e eu por ele
espalham-se ondas de rubor na face
minha dela
há risos
invade-me um olhar com brilho de anjo
aparecido para me ver feliz

o gesto e a palavra se confundem
os olhos são destino obrigatório
tenho a porta aberta ao mundo dos anjos

tanto que se quer dar quando assim é
apetece tocar mas sem magoar
apetece beber mas sem esgotar
apetece guardar
apetece partilhar e não se sabe o quê

fica-se ridículo mas fica-se bem
vou guardar este intervalo

três mulheres eu queria

Três é a conta que deus fez
o número de mulheres que eu queria
mas para não incorrer em blasfêmea
direi apenas
que queria uma
onde coubessem três

uma seria anjo
a guarda o guia
a luz alva da aurora
a mais doce ternura
a aparição e o sonho
toda a inspiração contida nela

outra seria santa
a adoração tamanha
o modelo exacto
fiel e doce
o rumo certo
um coração perfeito

a terceira só mulher
o encarnado dos sentidos
os desejos incontidos
o abraço e o corpo
o prazer e a dor
lábios e gemidos
amor amor amor

o passeio dos tristes

Não tenho hoje miragens que enlouqueçam
ou sequer que me sustenham
nem encontro nas gotículas de chuva
uma paz parecida com a dos anjos
ou outra paz qualquer

e a luz de Dezembro é tão pouca
que as cores ficam tristes por fora e por dentro
quase perco o fio á meada
no translúcido recanto
do meu apartamento piso sete

no cinzento escuro do bairro
a esquina forma com os prédios novos
e os outros
também com as árvores grandes
e as outras
contornos tão oblíquos
que transmitem uma textura inerte
difusa

o longe
não é mais o farol para lá do nevoeiro
a estrela polar de quem se encontrava na distância

e o perto
textura inerte e difusa
mais me confunde
quando reuno as forças todas
só para sair de casa e voltar
"o passeio dos tristes"

um povo brando

Pouca gente
um povo brando
com um mar imenso
e uma relação profunda
entre o longe e o perto

marcado pela distância
dos centros do mundo
matuta muito
amor e raiva se confundem
ou "vida abençoada"
ou "puta de vida"

como que deus seja português
e o deixe de ser às vezes

um povo que se mistura facilmente
um povo amigo
mas sem trunfos para jogar
e afirmar a alma grande que tem
no xadrez da economia

e sempre sempre acontece
a enxada e o sonho
o partir e o chegar
o pegar e o largar
o ter que ser

o Manel que rebenta se não parte
por a terra ser pequena
e já não caber mais nela

e a terra foi sempre pequena
para alma e braços tão grandes

e porque o sonho não cabe
na linha do horizonte
não pode haver Portugal sem lágrimas
ou sem poetas

tempo omnipotente

O tempo sempre o tempo
numa pequena lembrança
num qualquer susto
no gosto e no desgosto
no adeus obrigatório

o menino nasce cresce arrefece
os rios e as plantas vão com ele
também os combóios
a escola
o amor
o justo e o injusto
o lugarzinho pequeno e bom
que se apaga com a memória dele

e sempre este senhor omnipotente
omnipresente
a armadilha mais bem montada
o terrível paradoxo
a incapacidade maior do homem

porque tempo é vida
não se pode parar o tempo
(mesmo que se pudesse)

porque tempo é morte
não se pode parar o tempo
(mesmo que se pudesse)

nada

Saltita o pensamento sem se fixar em nada
fica oblíquo entre hesitações
ideias que devia haver e que não há
os sonhos que morrem sem nascer
as janelas fechadas
ou pior
a ausência delas

inspiro um pouco de ar
depois passo o olhar
entre prédios uniformes
da cidade
no desespero de encontrar um sinal
uma ideia pequenina e fértil

NADA

entro para dentro
afastando-me da varanda
ponho a torneira a correr
lavo as mãos e o rosto
acalmo o vazio que sinto
olhando um retrato de família
mas não acrescento nada

mergulho na memória

Fecho profundamente os olhos
mergulho na memória
há retalhos de mim por tantos lados
parecem vidas distintas
pequenos excertos
aqui ali acolá
com pétalas e cardos
consoante deus estava mais ou menos lá

por aí disperso
apenas o núcleo de referências
me tem mantido uno
e fiel a um núcleo principal

o tempo será quem faz o resto
não fico em lado nenhum porque ninguém fica
irei não sei para onde porque ninguém sabe
mas sei que tenho que ir para qualquer lado

que será da memória toda
que é luz e vida e som
e gente muita gente
quando não existir o ser que a ela se ligou(?)

o rio começa o rio termina

Há um limite para tudo
para a presa que foge e chega o tempo em que desiste
para o que sobrevive até que se cansa
para a dor que se aguenta até ser mais forte que a resistência
para o vento que não sopra sempre
para a ave que não mantém voo permanente
para o fim inevitável da linha do horizonte
para o tempo que não chega para ultrapassar o limite

não fora a ficção o sonho a imaginação
e o realismo absoluto seria o caminho certo

vida é vida e morte é morte
o que se vê é o que é
não mais do que isso
o rio começa
o rio termina
andamos sempre perto
do princípio e do fim

não fora a ficção o sonho a imaginação
tal como o rio
princípio e fim
não haveria além dos limites

sexta-feira, dezembro 08, 2006

entre a terra e o céu

Acordo por vezes
(mais quando regresso de lugares)
com uma ânsia desmedida de lonjura
de sair partir procurar
talvez onde não exista sequer
lugar

sentir o prazer de caminhar
subir ao cimo
com vento forte soprando nas narinas
mostrando-me outra encosta
outro cimo
aí onde só chega
quem não desfalece na subida

que regalo

monto a vela na mochila
e sou o pássaro que sempre quis voar
sou o barco que procura porto
sou o peregrino consolado
sou o emissário de lugares parados

sinto um prazer que não vem no dicionário
e acreditem
nada me falta
nem ninguém

No intervalo entre a terra e o céu
tenho todos comigo
porque estou com a alma toda aberta

anjo mulher e firmamento

Sou o intervalo das tuas paixões
ou talvez menos
uma aguarela suave esbatida
perdida nas cores quentes
de arco-íris e fogo
do teu coração

sonhei um dia
perdido nas palavras
enredado em hesitações
ver-te e sentir-te com a força do relâmpago
em volúpia que só tanto amor dá e tanta sede

quis lutar contra o tempo
esquecer a distância
fazer com que o dia nascesse sempre
entrar por ti a dentro como quem entra
num mundo perdido e encontrado
num templo vazio e simultaneamente cheio

mas para ti sou o intervalo
sou

nas palavras intensamente ditas
nos actos receosos
de que só fica uma memória frouxa
de um tempo gasto sem proveito

ou talvez não

porque ainda acredito na palavra
no infinito imaginar
no sonho que é meu
na distância imensa que sou capaz de encurtar

para te ver como quero
não longe mas perto

anjo mulher e firmamento
aí onde estás
no meu sonho
começa tudo e nada acaba

faço contigo o que me dá na gana

na cabana ao pé do mar

Na cabana ao pé do mar
no intervalo entre o sol e o luar
ondas lançadas nas arribas
fragas massacradas pelo tempo
sinto passar por mim sem perceber
sonhos de romances nos rochedos
caminhadas eternas pelos areais
loucuras de outras dimensões
que só a imaginação recria
ali naquele lugar

no aconchego das paredes frágeis
entre a dimensão do céu e do mar

se alguém me visse
se alguem aparecesse
alguém que entrasse em mim profundamente
e conseguisse beber o meu ser absoluto
se alguém conseguisse
na conjugação perfeita dos elementos
aparecer assim

ficaria ali eternamente
brincaria com as estrelas
saltaria nas ondas
desafiaria o espaço

e os areais seriam
extensos mantos de ternura
entre o mar e o céu

só amigo

Ando contigo entre a palavra amigo
e a palavra amante
desespero
porque não encontro na distância
entre os dois termos
a fórmula ideal para o que quero
(a atracção afinal também separa)

e não há gestos nem palavras
não há ilusões que cheguem
nem encontro soluções
amigo é pouco
quero mais

mas mais é muito
no vocabulário que tens
é quase tudo
é sentires que dás o que não tens
e ainda mais

eu fico sem jeito
no encontro e desencontro das palavras
perco o sentido da medida certa
fico com saudade e pena ao mesmo tempo
de mim de ti
de um tempo por cumprir
de um tempo por amar

desaparece o momento certo
fica apenas uma nebelina a pairar
entre mim e ti
que me faz enlouquecer

quinta-feira, dezembro 07, 2006

rapaz de lisboa


Ver-te triste assim
rapaz de lisboa
pousado no chão de um qualquer lugar
á chuva ao vento ao frio
pedaço de nada
infeliz cabisbaixo vazio
só com feridas por sarar

que vida

o que fez teus passos caminharem
num tal caminho de vida estragada(?)

passo por ti
mão estendida
conversa começada logo finda
olhos que decerto nasceram lindos de criança
que sentiram ainda o sol da brincadeira
o som da vida
talvez até um beijo
e o sonho de quem nasce para brincar e para amar

sofro de te ver
e por saber também
que ninguém vai te ajudar
limito-me a passar todos os dias
por ti
como os outros fazem afinal
e a deixar nos teus olhos fundos
suplicantes
a moeda (pão da vida) que esses olhos sentem
como último engodo e alívio no tempo que te resta

fico solidário e impotente
e quando me afasto
só me tranquiliza (pouco)
o milagre necessário que tu representas
e no afastar dos meus passos
num silêncio incomodado grito

"não esmoreças
talvez rapaz esse milagre aconteça"

se fosse possível

Se fosse possível
se andasses de ténis e t'shirt todo o ano
se em ti o tempo não fizesse rugas
e o sítio onde te vi nunca mudasse
se a marca dos teus pés na praia lá ficasse
se o verão fosse quimera e água benta
e tu sempre ternura

se a vida fosse assim
envolta em pétalas de ti
lágrimas lindas
que em teus olhos incendeiam
lábios e risos
de ninfa e de anjo

que só de os ver e ouvir
assim de leve
parece que levanto voo
e não me falta nada

que urgente fazer-se um céu assim
onde a alma acompanhe o gesto
e a utopia de ti
imagem moldura anjo
cubra de azul e também de eterno
o sentimento
a flor silvestre
o coração do mundo

sobre a morte

Perguntavas-me ontem
só porque leste uns versos meus
se eu escrevia sobre a morte
se eu pensava nisso
se eu sabia alguma coisa

e vi no teu olhar
(lisonja que senti)
um ar
de quem esperava encontrar
neste arrumador de palavras
neste escrivão de versos
a resposta correcta
a explicação certa

estava cansado demais
para falar da morte
confesso
mas porque sou alguém
que vai no mesmo rio
e as minhas águas são as tuas águas
e te vi preocupada

acabei por te dizer
não penso muito nisso
(era mentira)

é algo que faz parte
da caminhada
como as águas de um rio
que desatinam
com o medo da chegada
eram doces
ficam salgadas

é um novo ciclo que começa
é um mundo novo e grande
o mar
que as espera

mas a mudança
mudança radical
perturba
e é sempre um choque
há sempre um grito

o que é natural

porque depois
vencido o desacerto
o medo
até pode ser melhor
tanta largueza de espaço e de tempo

música sempre

A música tem vida vibração
desperta faz sonhar
leva cada um a descobrir que cantar faz bem
dançar também

o movimento o sentimento
a sensação boa que dão
o jeito que se ganha mexendo o corpo
aliviando a alma soltando amarras

poucas coisas farão melhor ao coração

e não há idade
para gostar de um qualquer som
existe só a escolha a ocasião

porque o que conta mesmo
é o enlevo que se sente
ouvindo em silêncio a melodia
ou sentir barulho a saltitar
ou pura e simplesmente acompanhar
com a nossa voz
o nosso jeito
o ritmo da batida
a letra sabida ou mal sabida
sorrir chorar

importa desinibir soltar
ao mesmo tempo que se dança
ou que se canta

e canto tem que ver com passarinho
dança movimento solto
fazem lembrar uma criança

domingo, dezembro 03, 2006

em ti o sol do oriente

Segurava o teu corpo esbelto e longo pela cintura
linda e vinda do oriente
como o sol
que já em pequenino me ensinavam vir da tua terra
desse oriente longínquo que nem imaginava saber onde ficava

também sabia
que vinha para iluminar tudo
para dar luz
para aquecer

eu aprendia essas coisas que diziam
achava então que o oriente só por isso
devia ser bom e feliz
por ter o sol primeiro que os outros
depois não ficava com ele
deixava-o ir para levar calor ao mundo inteiro

foi isto que pensei
quando hoje senti o sol oriente do teu corpo
sob o céu do meu país

só por pensar isso gostaria de ti

uma flor do oriente aqui na minha terra
ocidente extremo da europa
a melhor prenda hoje para os ensinamentos de menino
alma gentil sorriso de anjo um gesto terno
raio de luz em meus olhos tristes
não por te verem mas por se sentirem pouco ante os teus

quem dera que tivesses acompanhado o sol
quando eu era menino
quando o via nascer pelas manhãs
e só tinha olhos para ele
quando da minha janela o via aparecer
gigante
quase encarnado
uma bola enorme por detrás do monte
que emoldurava um dos lados da minha casa

mas já nessa altura eu pensava muito e não entendia nada

sabia que o sol vinha de longe
que era grande
que subia no céu durante o dia
e depois desaparecia
afinal como todas as coisas que aparecem

mas eu ficava e fico triste por isso
porque gostava e gosto
de muitas coisas que aparecem
e depois desaparecem
como o sol

e não entendia nem entendo porque tem que ser assim

protesto revolta

Que posso fazer pelos outros
sem primeiro fazer por mim
que posso dar sem semear

o fruto vem depois de plantar
cuidar
depois de andar dedicar muito amor
a tudo

colher antes como pode ser

antes de madrugar lavrar sentir tocar
arriscar
ninguém vai a lado nenhum

eu posso protestar fica o protesto
eu posso-me revoltar fica a revolta
eu posso até ter razão
no sentimento e nos actos
na atitude que tomo solidária
de ir para onde os outros vão
de estar com eles no entendimento social

mas no fim das bandeiras no ar
do desfilar voraz
compacto
ombro a ombro braço a braço
grito a grito
que ficará no silêncio estéril do meu quarto
sem ver sequência no tempo dado
sem ver sementeira e só queixume
e sentir que logo mais logo um dia vai nascer
e eu na mesma

queixoso cansado adiado
sem enxada nem arado nem coisa nenhuma

e a multidão que faz a multidão
a esta hora em que me devora a noite(?)

sinto-me tão atrapalhado

Se eu lhe dissesse baixinho
naquele ouvido branquinho
arrepiado em sussurro
tão agradado em sorriso
o que lhe queria dizer

mas por onde começar
sinto-me tão atrapalhado
talvez para impressionar
uma história de pasmar

eu perdido num campo
território francês
anarquistas cabeludos
políticos fartos discursos
eu na tenda ensaiando
um caminho sem futuro

ou a outra em que estava
bandeiras berrantes cores
alaridos ruas apitos
intensa berraria gente
carros tanques e gritos
para derrubar o presidente

ou a aventura em África
calor tórrido eu no mato
guerra aberta eu corria
tiros mortos muitos feridos
em um silêncio de morte
uma emboscada na vida

e neste desfiar de rosário
de que modo impressionar
dei-me conta a transpirar
cansado de tanto pensar
que a carinha afastava
levando o ouvido e o sorriso
incapaz de aguentar
o meu silêncio deprimido

e era tão simples o que lhe queria dizer

liberdade a quanto obrigas

Liberdade nunca é demais
há quem diga
mas se a liberdade é demais
cada um para sua banda
acaba tudo aos ais
sozinho e sem comando

sou tão linda danço bem
eu sou toda exigente
não me dou a qualquer um
eu cá sou toda peixeira
ninguém ouve mas eu falo
pois a mim ninguém me cala
eu encosto ali ao canto
durmo e descanso deitado
e assim faço o que posso
a mais não sou obrigado

tal qual manta de retalhos
uma liberdade sem leme
cada retalho faz falta
a manta precisa deles
mas depois tão separados
tem que haver quem os ajunte
coitados

neste propósito lembrei
que certas modalidades
em desporto conjugam
e bem
figuras livres e também
figuras obrigatórias

que liberdade demais
leva a grande solidão
como levava o degredo
em regimes de opressão

e olho aqui para nós
viveiro de tantas cores
sonhos e tantos calores
retalhos de tanto lado
só com ampla liberdade
sem nada de obrigatório

um dia destes cansados
de coração destroçado
livres exangues num canto
acabamos entregados em gang
ou seita quem sabe

e como um bem abraçamos
rezar em êxtase em vómito
ou o alheio roubar
e mobilizados lutamos
contra a liberdade que fomos
sem nada por que lutar
e em que nos sentimos tão sós

mudar o lado do disco

Custa tanto a perceber
nesta vida que levamos
tantos conceitos cansados
tantos hábitos repetidos
má tradição feita vício
que tardamos a aprender
mudar o lado do disco

tardamos em perceber
que do outro lado existe
uma atitude fantástica
um renascer com mudança
que pode muito bem ser
a terapia acertada

uma questão de atitude
de um lado o disco riscado
que chatice mais um dia
problema e mais problema
tanto esforço em vale de lágrimas

do outro feito arco íris
toque de deusa e de fada
cada dia é uma dádiva
cada dia tem cá tudo

o sabor amargo expira
o sol nasce e nos inspira
vida vida e mais vida

a música toca e anima
o rio lama já cansa
optimismo contagia
vira o disco e caminha
rio de amor abundância
vira lado positivo
descobre a criação perfeita

segunda-feira, novembro 27, 2006

outra primeira vez

Que fome de SER e que medo
diante de um mundo de caras diferentes
que dou
que tenho
que ofereço
que amigos
que digo
que faço
quem escolho quem brinca comigo
tal como na primeira aula de francês

que castigo se falo(?)
que castigo se mexo(?)

vindos de lados diferentes
juntos na dúvida
na mesma turma

que sonho(?)
que ali(?)

na carteira ao lado
no olhar mais brejeiro
o som das palavras que a professora entoava
não significava muito
porque a turma sentia no meio do medo
do primeiro dia de um passo novo
que havia tanto por vir mas tanto
que juntos no cheiro no riso no remexer nervoso do livro
nas faces rosadas
que mal se ouvia
a voz compassada e suave
às vezes grave
que justificava para nós a vida a nascer
perdidos e achados
numa turma de francês

assim foi ontem Lisboa ginásio
não a aula de francês
mas outra primeira vez

encolhidos mostrados
medrosos no sonho
olhando e corando
sorrindo e calando
em jardim de pessoas
que bem podiam
ser cravos ser rosas
lírios mimosas
arbustos hortenses amores de todas as cores
ou árvores frondosas

um jardim do mundo
sem guerra nem ódio
nem fome nem dor
só música de flores
e vento suave empurrando as flores
para se tocarem trocarem odores
para se cheirarem e se abraçarem
para nunca se sentirem
nem tristes nem sós

domingo, novembro 26, 2006

um tempo um olhar

Olhei os olhos dela permissão de estar
li a resposta na retina dilatada sorridente
e entendi que podia ficar

primeiro olhei devagarinho
sem magoar
depois entrei porque senti que podia entrar
entrei devagarinho depois bem profundamente
até ver aqueles olhos bem pertinho fundirem-se nos meus

como brilhavam e ficavam água macia

e com o tempo acontecia
uma cadência incontrolável de imagens palavras qu eu via e lia neles

espelho de mim aqueles olhos coração
fogo mar e céu em emoção
flor beijo mel rio e fonte
parque de toda a fantasia

em baixo enquanto o fogo do olhar acontecia
o meu corpo tremia
os impulsos que vinham de cima e a força deles
tiravam força às pernas e aos sentidos todos
e a minha mão perdia-se numa fogueira pequenina
sem saber o que fazia
tocando entretida um sítio algures escondido no corpo que a acolhia

intuitiva a minha mão sentia o aproximar inevitável do adeus
tentava em vão evitar o fluxo do tempo
pressionando o sítio bom onde pousara
mas o tempo é tempo e passa sempre
inexoravelmente
tinha chegado ao fim mais um momento mágico eterno

antes porém de se cumprir o fluxo inexorável do tempo
antes de se fecharem os olhos em devoto recolhimento
uma lágrima teimosa caía nas mãos que ainda se apertavam

tombou morna tranquila
naquelas mãos que se queriam como os olhos
baptizou-as para sempre em água de instante cor de rosa
regando-as com a palavra
AMO-TE

respiração profunda que incendeia

Na respiração profunda que incendeia
coração com coração
não me lembro bem que aconteceu
porque quando a alma solta fica só mesmo coração
coração tão grande como o sol

envolve aquece derrete
mãos rosto pernas enfraquecem
desaparecem
fica apenas manto de êxtase
um eu num tu dentro de mim
de que nem se sabe falar
nem escrever
nem recordar

talvez porque a mente não pode acompanhar
não consegue registar um tal sentir
e adormece
desiste
sai da festa

e só depois
quando a mente acordou
voltou a si
deu para entender que escapuli
desintegrei

que fui anjo milagre
diabo sacrilégio
mal e bem
tudo e tanto
longe e perto
onde não sei

só sei que sinto-me tão bem
com o olhar assim
feito farol incandescente
o peito sossegado ardente
as pernas inseguras
cambaleantes
um estranho vaguear de quem desperta
de quem não reconhece logo o terreno que pisa
e tacteia e estranha o que vê à sua volta

que só posso acreditar
que os meus sentidos me levaram
ao sítio melhor do universo

não morro por sentir amor


Não perturbou nada quando eu julguei que perturbava
em círculo fechado próximo aconchegado
postura fetal de indescritível prazer
um coração batia o meu ouvido ouvia
como que queria sem querer que ele percebesse o meu acto de amor

Não aquele amor obsceno ocasional brejeiro
mas um amor maior que impelia o meu ser rumo a ele
no meu deixar cair-me sossegado
qual gato ronronando enrolado e dado
silêncio e paz de estar tão bem

Claro que o fazia com a educação toda que aprendi
não sou mestre nesta coisa de gostar
qualquer movimento mais pesado
ou necessidade de mexer um braço pôr a mão
tudo fazia comedido e com medo de estragar
que reacção haveria no coração que me acolhia
se eu desse ordens ao corpo para avançar

A arte de sentir pode não ser o que o corpo quer
manda o coração que se vá devagarinho
e que cada passo encontre uma resposta
como quando se pára no caminho e se descansa
antes de recuperar o fôlego e continuar a caminhar

Claro que apetecia ser louco zorba nu e tanto
claro que apetecia soltar o grito visceral
claro que apetecia VIVER ali o tempo que falta
claro que apetecia
nascemos para amar e para perder o juízo

Havia blusas e pele de tantas flores
havia odores havia gente havia lábios
homens mulheres suor
havia tudo para se enlouquecer
não no conceito de amar para morrer
mas no conceito de amar para viver

Que saúde que céu que tudo deve ser viver assim
ronronando suspirando encostando os corações e o resto
num enlace maior

Hoje vos digo companheiros
não morro por sentir amor
morro é se não ouvir-vos e ver-vos meus amores

mãos juntinhas num lugar


Mãos juntinhas num lugar
a minha a dele a dela
uma foge outra a apanha
depois larga torna a agarrar
a correr ou devagar
com mais ai ou menos ai
com mais dar ou mais tirar
num entendimento sem fala
uma paixão de viver

naquele sítio apertadinho
as mãos sentem-se tão bem
estendem distendem seguram
soltam gemidos sem querer
elas se entendem se dão
sobem descem vão e vêm

para quê olhos para ver
ou pernas para correr
ou livros para ensinar
sabe-se tudo sem ler
e correr só devagar

se as mãos pudessem
se elas mandassem
se elas tivessem o poder dos donos
ficariam juntinhas
umas com as outras
sem definições
sem tempo
nem complicações

era só viver sentir tocar
agarrar e largar voltar a agarrar
um dedo outro dedo
três quatro dedos
a mão todinha

porquê acabar
um ser um estar um dar um sentir
um tactear de prazer

coisas de donos de adultos
só pode ser

se as deixassem ficar
fariam juntas
uma casinha de amor para morar

sexta-feira, novembro 24, 2006

chuveirinho de mãos

Acertadinho com os outros
em roda rosadinha
eu diria entalado entre os demais
um chuveirinho caía
devagar e a compasso
por detrás de mim

A minha atenção ainda desconexa
a compor o espaço
endireitando um pé desalinhado
uma mão mal apoiada
de repente desligou bloqueou
só sentia o chuveirinho

Um chuveiro de mãos e não de água
de pedir meças a qualquer duche
cascata catarata cachoeira
uns dedos mágicos que teciam
de cima a baixo de mim
uma malha de rios de mimo

Sim que eram rios que corriam
desde a ponta dos cabelos
cima a baixo
nuca pescoço
ombros braços costas
fluxo babilónia mel desejo
que de tanto correrem eu ficava arrepiado
e era bom ir atrás do arrepio

Podia morrer afogado naquele chuveiro doce
pois já não tinha posição
o meu corpo perdia ganhava altura
descia subia
entortava
desfalecia
depois voltava a crescer
a cabeça perdia o pescoço
ficava zonza
para encontrar mais e mais o rio que corria

Porque era muita a chuva de mimo que sentia
e o mimo sabia bem
talvez se entretanto o chuveiro não parasse
eu ficasse tonto
sem noção exacta do lado de fora da vida
mas sabe tão bem perder o pé em águas fundas
desafiar a corrente quando ela corre de feição

Que apetecia ficar ali eternamente
tonto ou são que importaria
se se estava bem

como posso ter o que quero

Como posso no olhar que faço
nos passos que intento
no mostrar da face
no acertar do corpo
na dança que forço
não revelar cansaço

Como posso na intenção que tenho
na paixão demais
no sorriso que estendo
no amor que falta
no perdão que tento
não revelar cansaço

Como posso no beijo que ponho
no suor que brota
na ãnsia de tanto
na taquicárdia do sonho
não revelar cansaço

Como posso ver-vos olhar-vos
rapazes garbosos
em trote a galope
as damas a ver-vos
a quererem amar-vos
sem revelar cansaço

Como posso olhar essas damas
lindas ligeiras
fogosas trigueiras
rosas amores e lábios de flores
em roda a rodar com corpos em chama
sem revelar cansaço

Como é que posso dar o que tenho
e ter o que quero
com este cansaço

tempo dos outros

Parei na rua estreita
absorto
todo parado mesmo
sem sentir que à minha volta
havia um cão abandonado
gente que mexia
janelas abanadas pelo vento
que rangiam

No meu olhar
em estado hipnótico ou quase
na minha mente
senti um calafrio talvez pela primeira vez

Não muito longe via-se a grande ponte
pesada austera férrea
e de repente senti
que o murmúrio
a labuta o frenesim que corriam lá
era um fluxo de tempo
em que eu já não ia
era como ver a vida continuar
e eu ficar
gelei

A morte deve ser assim
o movimento a gente e a força
sempre a avançar
uma massa compacta vista assim daqui
na ponte
como eu a via
eu parado e absorto ficava

e que dor grande o sentir aquele instante
era o adeus ao movimento
a desistência total
naquela ruazinha
a um tempo que fugia
e que passava a ser o tempo dos outros

encontro breve

Rostinho de menina
suavidade que constrange só de vê-lo
como os sentidos se encolhem
recuam
em gestos sinuosos
deixam de sentir de ver de ouvir
é proibido querer
não se pode
não se deve
e tanto que apetecia
abraçar envolver agarrar
e até beber

No teu ser que tolda a vista
que chama pelo desejo
desisto
que desistência cruel
não pode ser
é mal é bem
dever
há o dever e o poder ser
não pode ser
as normas as leis
palavras amontoadas de proibições

Deixa não
acabo enfim por lhe dizer
ficará o sonho o desejo enorme de beber
o aroma a flores a seiva fresca
o teu amanhecer

Talvez um dia quem sabe
tudo mude
e os sentidos e as flores
possam estar mais perto

aldeia perdida

A vida breve se encaminha
no sentido do sol quando se põe
por sobre crutas de pinheiros
e sons irritantes de pardais

No caminho estreito e sujo
passa um burro igual ao lusco-fusco
única presença de vida ali naquele local
as cores do dia ficam cores da noite
e nem um xaile negro
um rosto triste
um cão chorando

Ali onde já passaram senhores
cavalos de bom porte
trabalhadores
donzelas
cavaleiros também sedentos delas

Agora nada
apenas cabanais abandonados
pedras caídas fora do lugar
palha por comer vida por achar

A aldeia morreu
(ou quase)
à sombra da igrejinha
(sino por tocar)
silêncio que anuncia morte
um vento frio que não muda a sorte

Talvez um dia em vez de fartos batatais
de férteis olgas de quintais
já sem velhos
a aldeia feita história
tenha enfim a "sorte" de virar um parque natural

segunda-feira, julho 24, 2006

para ti

Suspiro pelo tempo em que imagino
Tocar tudo o que tens e que me ofereces
Em que o abraço vale bem mais que um cacho de uvas
Mesmo quando este era a coisa mais doce
Mais suculenta
Mais apetecida
Em tempo de vindima que antecedia o mosto

as paixões

As paixões inflamam os corações
O brilho a calor a vontade de viver
Qual fogueira acesa de lume a crepitar
Sem nada que aconteça que não seja bom

Podia-se morrer assim que se morria bem

Mas não te iludas com a jornada quente
Logo mais logo fica frio
A geada a neve o pesadelo
Sucedem ao sonho ao sol ao arco-iris
Ao abraço envolvente a que chamaste eterno
Ao murmúrio de fluidos que corriam
Qual regato mimoso entre juncos e giestas
Qual silêncio esquecido de ecos nas árvores e nas pedras

Tal como o sol que nasce e também se põe
Assim acontece com as paixões
São fogueira quente luz incandescente
Depois cinza sombra e desalento

necessidade de lonjura

Entre o tempo que tive e o que tenho
Há uma cerca a toda a volta
Uma rede de malha verde
Andaimes e mão de obra barata
Sonhos grandes e pequenos
E vazio
Especialmente vazio

Do que se queria e não se teve
Do que se quer e não se tem
Do que passou e teve o curso que teve
Não o outro que não teve

E sempre esta solidão acompanhada
Este querer fazer e não poder
Estes tabus inventados
Ensinados
Que incapacitam
Tiram o sono quase todo
E são tão fortes
Que podem levar um homem à loucura

Abro a janela e tento respirar
Da rua vêm sons de vidas paralelas
Todas iguais todas diferentes
Sinto o barulho frenético de todos para cada um
esse barulho demolidor
Que empurra a vida para a frente
Que ignora o meu silêncio
A minha necesidade de lonjura
O meu querer encontrar-te
E não querer
Só com o medo de perder-te

É tudo tão igual aqui
Tanta dor e tão pouco remédio

paz em português

Disseste um dia baixinho que o mundo era pequenino
Que não tinhas cultura para um mundo que eu dizia ser tão grande
Eu não ligava esperando sempre e mais que tudo o teu conforto
A tua mão pequenina e branca
Tão pequenina e branca que podia muito bem ser neve ou pétala de flor
E que eu guardava na minha
Para não mais a querer largar

Cheguei a desejar esse mundo pequenino
Olhando sem querer o que não queria ver
O soldadinho para matar para morrer
Ali escondido e triste e cheio de medo
Louco pela loucura dos outros
Quando a tua carícia era tão boa e doce

Quem dera poder dar ao soldadinho
E aos outros que ele vai matar
E aos outros que o vão matar
Este pedacinho de mel
este recado de amor
De ti

E dizer-lhes que não há petróleo que valha
Nem território grande nem nada
Que se compare a uma lágrima tua
Ao teu mundo pequenino
Ao teu coração de anjo
Ao lugar de paz que és
O melhor lugar de amor do mundo

Se fosse soldadinho e soubesse isto
Nunca acabaria com lugares destes
Nunca mataria corações
Só se estivesse doente
Muito doente mesmo
E tivesse de todo perdido o juízo

lágrimas sem regresso


Onde estão os tempos que incendiaram
As estradas os lugares os sonhos
O frenesim que alimentava
Um amor nascido para não ter fim

Optámos os dois pela via estreita
Por ser mais calmo sobreviver assim
Optámos pela distância
Para curar males maiores talvez horrores

Mas viver assim é viver menos
É nã ter o calor a paixão
E a dor de amar
É não viver com consciência que só se vive uma vez
E não se sabe quanto tempo
Ou até quando

E um coração morto é um coração sem vida
Eu morri nos teus braços no último dia em que te vi
Penso que morreste também
Nas lágrimas que chorámos
Tantas lágrimas que o teu colo incendiava
Nos meus olhos que olhavam os teus
Pouco antes de perdê-los

E apesar de em cada dia tentarmos sobreviver
Depois da despedida
Só apetece dizer
Que vida complicada
Que entrelinhas impossíveis de alterar
Que desperdício meu amor
Pela totalidade que fomos e que não volta mais

domingo, julho 23, 2006

sonho branco


Meu passarinho esvoaça nas neves dos glaciares
Queria ser tão puro como ele e encontrar
Ninho e abrigo nele
Aconchego bom em tanto frio

Mas como menino de escola que sou
Certezas sempre por saber
Fico de castigo em outro inverno
Onde nem o sol quando aparece
Brilha
Nem me aquece

Chego a desejar a palmatória
O erro condenado
É mais aceitável a dor do que o amor

E se é curto o meu mundo e tenho medo
De ir mais longe
Em busca do tesouro
Pois que não me queixe quando morro
E me arrasto lento e frouxo pelos dias

Que me não sinta triste
Só porque não tenho
O que se partisse e ousasse tinha

terras de Viriato

Em terras de Viriato te imagino
Acordar com vida e viver teu fado
Corpo ágil
Palavra fácil
Sonhos de menina
Irrequieta boa
Capaz de levar a quem merece
Um consolo um abraço um beijo

Quem dera que a vida começasse agora
E entre giestas e prados
Em jardins de Primavera
Pudesse ver semeado de flores o teu olhar
Ver sempre projectada no horizonte
A esperança que és
E o movimento imenso que o teu corpo guarda

Só que a vida é um tempo sem regresso
Dura o que tem de durar
Apenas
E a intenção que se tem
Por mais sublime que seja
Necessária
Urgente
Dói só de pensar nela

Um atleta quando corre
Sabe que a corrida tem os seus momentos
Euforia cansaço
Alegria desalento

Também a vida tem esses momentos
Ela é no fim de contas
Um ajustar permanente deles em cada ponto da corrida

Algarve quente

Cobri-te de beijos de carícias
Deitada sem jeito e descomposta
Na cama ao luar de Agosto
Algarve quente

Fui prisioneiro na prisão que foste
Tão feliz a espaços
Que queria ficar preso sempre
Se pudesse

Queria que o sol nascesse e se pusesse
E a liberdade se esquecesse de mim

Amei-te tanto

Quis-te tanto

Que perder um amor assim
é perder um pouco a vida
é sentir uma dor de despedida
é deixar de sonhar
Porque não existe sonho

Olho o oceano em baixo
E o que vejo
Não é mais a paisagem deslumbrante
Na noite que caía
Serena e doce

Que eu mostrava aos teus olhos grandes
Boquiabertos
Que só de a ver neles me parecia ainda mais bela

Mas um lugar real
Que só não é mais triste
Porque é talvez
Um dos mais lindos lugares do mundo

Lisboa madrugada

Sei que andei Lisboa em tuas ruas
Sei que és linda de morrer
Sei que subi e que desci
Sei que era Janeiro e estava frio
Sei que a multidão desaparecia

Mas perdoa não te vi
Não tinha olhos para ver
Porque não era preciso ter olhos

Bastava o bailado do corpo
E os dedos
Para encontrarem os contornos nas veredas

O horizonte estava todo no tacto
E na luz da alma

Meu amor
Entre mim e ti
Não há distância
Para além de nós
Não existe nada

o ritmo contagia o gesto

O ritmo contagia o gesto
Repare-se na igreja
O cheiro o sussurro
Algum silêncio o canto
Gargantas afinando
Tossindo engasgando em oração em canto
Às vezes em cochicho
E a voz do padre soando
Como um mediador do ritmo

Perturbado apenas de quando em vez
Pelo incómodo causado
Com a entrada tardia de alguém
Que não cerrou a porta
E no espaço ficou um frio intenso
E corrente de ar.

Ou pelo incómodo agudo no silêncio
De um grito inquieto e livre de criança.

Ou ainda pela viagem discreta
Do devoto que sem querer
Dá com uma beleza de saias perturbante
E faz passar discretamente depois de ver
O olhar tocando as sobrancelhas
Pelas abóbadas celestes altaneiras.

Mas é esta a onda o ritual a cadência
Tudo faz parte
Senta levanta ajoelha
Reza canta
O gesto vai saindo
Quase como se cada um vivesse junto com a outra gente
Desde pequenino

O mesmo acontece em qualquer festa
Num velório
Numa discoteca
Num enterro
Numa visita guiada de museu
No areal da praia
Numa sessão de biodanza

O ritmo contagia o gesto
E depressa tomamos o compasso dos outros

Quando percebo isto acredito
Que se possa criar o sítio certo
Um sítio livre e aberto
Onde ninguém seja obrigado a nada
Onde se possa estar como se é
Onde se dê como se pode
Onde se peça como se sabe
Onde tudo seja possível
Porque para quem lá vai
O impossível não existe.

pezinhos com pezinhos consolados

Pezinhos com pezinhos consolados
Em posição fetal de angelical prazer

Depois o abraço

Olhos nos olhos mesmo ali
Pertinho
(Que dor que dói de ver-me neles
também de eles me verem tão cá dentro)

E perguntava-me sem falar

Será que eles sabem tudo a meu respeito
Que são magos e adivinhos
E se soubessem

Era medo muito medo que sentia

Ora entrava ora saía
Ora dava ora tirava

Olhos espelho em que me via tanto

O muito que se quer
O tão pouco que se pode
O coração enorme feito pequenino
Na falta de jeito que se mostra

Que sei eu daquela vida além dos olhos
Que ganhavam perdiam brilho como estrelas
Que atraíam assustavam a um só tempo

Que sei eu para além dos julgamentos
Das frases decoradas
Dos silêncios aprendidos
Das linhas rectas descampadas
Dos faz de conta que desculpam actos

Senti-me mais uma vez tão poucochinho
No complexo inexplicável dos afectos
Na incapacidade de dar e de pedir
Um pé uma mão um beijo um sítio
Um recanto
Onde ao menos de quando em vez
Se repetisse o sonho

Será que falta coragem a cada um de nós
Para pedir isso
Pedir simplesmente o que se quer como uma criança faz
“dá”
Decerto ninguém recusaria satisfazer um pedido assim
Ingénuo espontâneo cativante

A dificuldade está
Em pedir como a criança pede
Em dar como a criança dá

Porque a criança está
Para além do disfarce
E por ser assim com ela tudo acontece

dei por mim atento ouvindo o coração

Dei por mim atento ouvindo o coração
Desta vez não entrei na dança
Quem eu queria não me queria
Talvez porque atrasei o passo
Em vez de avançar fiquei
E já o rosto em intenção do coração
Passara ao lado
Parando em outras mãos

E era duro correr em busca de ninguém

Ainda hesitei fiz um compasso
Com o corpo e o olhar em rotação
Fiz um derradeiro esforço
Buscando alguém
Mas o último sorriso apreciado
Tinha já passado também

E eu sentei

Entendi ser melhor assim
Pois o exercício envolvia sentimento
E fiz bem

Por tomar tal decisão em consciência
Não senti arrependimento
Claro que ficar de fora sempre dói
Dá assim um ar de rejeição
Fica-se um tanto em abandono

Mas aceitei a coragem nova que enfrentava
E em lugar de dizer sim a um qualquer frete
De não saber dizer não para honrar a educação
Ousei afirmar um não em vez de um sim contrariado

Honrei-me a mim em vez de honrar a tradição

Porém já sentado recolhido
Mãos no peito em interioridade
Vi o pensamento acordar
E colocar-me uma questão
Tão simples quanto séria
Tão pueril quanto sagaz

Parecia a voz de uma qualquer razão

“Será quando se escolhe ao querer o óptimo
Não se arrisca a ter o bom à mão de semear
E se perde o bom só por se achar
Que em escolha boa só o óptimo nos serve”

Tal conjectura abalou a minha decisão
De ficar de bem comigo em sossegado recolhimento
E assisti perplexo ao entristecer do rosto
Com a mente ao invés do corpo
Bem sobressaltada em movimento

De tal modo inquieta
Que o meu eu em corpo manso e quieto
Quase em oração
Estremeceu tanto que quase gritei

Há aí alguém que me estenda a mão

(só o não fiz por contrariar o poema)

um abraço de amor

Suspiro por que o tempo pare
Se esqueça deste embalo em que ficamos
Unidos sem que seja proibido
Felizes porque não somos obrigados
Tontos porque o à vontade falta

E no enlace em que nos damos
Quase coramos
Como fazem dois meninos
Quando se tocam pela primeira vez

É bom e eu gosto
Sinto com o coração coisas boas que só ele sabe sentir

E quanto mais olhamos mais coramos
No embaraço tropeçamos
Mas logo disfarçamos dançando
E formamos uma roda cheia farta
Como se fora um mundo pequenino de mãos dadas

Tão livre tão bonito
Tão ingénuo divertido
Tão musical tão ar de amor
Tão utopia
Que até custa a crer que esteja a acontecer
Que possa haver um lugar assim

Talvez um dia quem sabe
Esta roda se agigante ganhe coragem
Cresça cresça
Dance dance
E se estenda
Para longe cada vez mais longe

Passe as janelas portas ruas
Cidades campos mares
Em cântico crescente de tom e de gente
E assim floresça
Uma onda macia boa linda em grande círculo
E aconteça
Um abraço de amor de todos os cantos do mundo

vejo-te dançar

Vejo-te dançar esbelta impossível
Olhos desviados no acto de te dares
Corpo intenso arrepiante
E a minha pele embaraçada soluçante
Pergunta-me tremendo ao tocar-te
Que fazer
Que voltas dar
Que artimanha encontrar
Para eu ficar juntinho a ti
Ao menos um tempo um bocadinho
Ou se possível para SEMPRE

Como pode esse ser inteiro perceber
Esta fome de amar que sinto
E espraiar na direcção correcta
Um sopro de amor
Uma chuva de prata
Um beijo

Como dar a entender este meu desejo
Fogo por arder
Vendaval de dádiva por cumprir
Este coração enorme engolido pelo tempo
E pela falta de tempo também

Morro assim um pouco em cada dia
Morro em ti e na minha ilusão também
Lá fora o mundo gira o mundo ri
O mundo agita
O mundo avança
O mundo grita o mundo dança
O mundo tem tudo até a sorte de estar vivo

Mas que importa um mundo tão cheio de tudo
Se tenho que ser pragmático
Evitar o que cause dor ao coração
Este bailado que és
Esta vida cheia só de olhar para ti
De te tocar de te ter de te sentir de viver de ser de amar só isso
Mas desisto

Pego na trouxa e vou-me embora
Porque a dúvida persiste na ilusão de acreditar
Quem sabe não fosses o milagre a mostrar-se
Mesmo ali na ponta dos dedos

busca de amor

Traz-me aqui um não sei quê de indecifrável
Um querer ser feliz por não o ser
Uma busca de mais por não o ter
Uma busca de amor que cure
Os instantes inquietos
Os medos do mundo que me assustam tanto

Aqui ao menos por instantes
Forço o rosto e agarro o desafio
Esquecendo o resto
A boca entreaberta disfarça a mente crispada
A carência escondida

E assim caminho passo a passo
De olhos fechados encontro a espaços
A beleza luminosa de tantos corações presentes

Deixo-me ir no desafio
Mas não me encontro tanto quanto queria
E esmoreço
Quase me desfaço em pranto por isso
Só não choro porque evito

Sei que não devo mas não choro

Quem me enxugaria as lágrimas se eu chorasse
Quem ousaria adivinhar as histórias infindáveis que elas choram
Quem aqui e agora sem nenhum regulamento
Sem nenhuma obrigação
Sem qualquer estatuto
Cuidaria de mim

Vive-se o momento bom quando acontece
É isso e nada mais
Porque logo fica tarde
E as pessoas vão-se embora
E porque é assim esmoreço e fico triste

Mesmo sabendo que tudo parte tudo acaba
Que a vida ela própria é movimento
E o movimento um acto de partir

Mas porque me vê triste com isto
Diz-me o sonho de mansinho para me consolar


Quem sabe companheiro um dia destes
Não seja proibido que o sol desapareça no horizonte
E que a carruagem parta e se afaste de ti
Até pode ser já amanhã
Quando a madrugada chegar para te acordar

sonho no ginásio

Deitado transpirado abandonado
Olhos nem abertos nem fechados
Olhos de quem dorme ou de quem sonha
Eu
Naquele canto do ginásio
Onde tudo parecia adormecido
A luz o fim da festa a noite

Nenhum companheiro havia já
O lugar mudara a identidade
Era um ginásio mas um ginásio diferente
Eu parecia eu mas tal como o lugar perdera a identidade

Estava nu
Tremia um pouco porque havia um ar fresco no lugar
Mas estranhamente o corpo estava transpirado
Quente

De repente como num imenso palco acontece
Quando aparece a artista consagrada idolatrada
Irradiando luz projectada por holofotes
Assim apareceste tu
Os teus olhos cada vez mais perto
O teu rosto entre mim e o tecto
Os teus lábios pousando
Qual flor e pétala em meu peito


Eras linda
Loira mulher que me davas tanto
Carícias beijos tacto
E o meu corpo agradecia
Tremendo contigo onde pousavas
Como eu sentia
Como a tua boca espalhava o suor em recantos de mim
Que nem eu próprio conhecia

Eu era palheiro de trigo em verão ardente
Primeiro seco e só no meio da eira
Depois malhado trabalhado suado
E o palheiro parecendo palha sem nada
Jorrava em alquimia alqueires fartos de grão

Fiquei assim da noite para o dia



Quando finalmente vim a mim
Desperto bem desperto mesmo
Não havia sinal de eira nem ginásio
Nem de loira transpirada
Nem de beijos
Eu estava no sítio do costume
Com todo o dia pela frente
E sem nada de importante para fazer

lição de um grupo em acção

Vem que não vem
Há ou não há
Nesta quarta não na outra está bem
Antes porém há a selecção
Que pode ditar o campeão mundial

Quisera que fora o nosso Portugal
Mas se não for
Fica marcado entre nós
Encontro suado vivo partilhado

E chore-se ou ria-se com o resultado
Há-de ser decerto o encontro esperado

Que os dias que correm
Que os sonhos que temos
Que a festa que queremos
Transforme para sempre as vidas que vivemos

Com mais com alguém
Com parte de ti do outro de mim
Que todas as partes
Combinem e troquem pedaços de si

E assim
Juntando pedaços
Do outro de mim de ti
De tantos que somos
E mais seremos
Possamos vencer na vida em conjunto
Unidos empenhados
Sinceros ligados
Inteiros com partes
Perfeitos
Como a selecção

sábado, junho 03, 2006

semente

Num gesto de amor
Preciso
A terra acolhe a semente
Como mãe que acolhe
Um menino no seu ventre

Agora é dia e anoitece
Logo é noite e arrefece
Dias passam dias vêm
Sol e noite noite e dia
E de dentro da terra a força brota
Quase irrompe
Sente-se a vida em luz
A uns sóis a umas luas
E ali já nenhum sonho ultrapassa o de nascer

Claro que o medo é imenso
Deixar a terra custa
A vida é incógnita aventura
Mas a semente ousa e cresce
Rompe e aparece
O sol a beija e ela gosta

A formiguinha passa qual gigante em cima dela
Esvoaça assustada a joaninha
Sente o primeiro chilrear de um passarinho
Ela pequenina
Tenra ingénua pura
Chora e ri com medo e alegria

À sua volta estende os olhos já consegue ver
E vê que não está sozinha
São muitas as sementes a crescer juntinhas
E a aventura é a mesma para todas
A brisa sopra vem do norte e é fresca

Ela em perninhas de caule flecte e abana

Deixa-se levar à medida que cresce
E porque tem medo toca nas outras
Sempre ondulando tocando
Vai que não vai
Tomba que tomba
Cai que não cai
Dão balalão
Esta é a música que sai

E ganha balanço
Depois confiança
Cresce se cresce

E num verão muito quente
Baloiça não cai
Seara bonita fruto que é grão
Também pão do mundo
Dão balalão

que medos que inseguranças

Que medos que inseguranças transportamos
Nos caminhos da vida
Que quando podemos
Só queremos mesmo é colinho de crianças

Que mal humorado vai senhor soldado
Tão armado empertigado
Lembra alforge cheio de jumento carregado
Que tomba e sofre e mete pena

Quem lhe fez mal
Quem o fez sentir-se assim tão mal amado
Quem o pousou em ondas de violência
Sem primeiro lhe estender
Uma teta
Uma chucha
Uma mão

Aprendi ainda adolescente
"Quem com ferros mata em ferros morre"
Porquê então matar para morrer

Eu sei que à noite em luar de lua cheia
Na tenda de campanha
Há sonhos de menino
Por cima da metralha

E a boca cerrada
Abre então suavemente
Para misturar o ar e a luz com uma lágrima

Aparece decerto alguém
Um corpo de mulher
Um sítio uma traquinice
E a tua boca humana e singela
Aquece com um beijo escondido
A foto guardada em que resgatas
Uma ternura de anjo

Talvez o pesadelo acabe soldadinho
Há tantos braços lábios
Cidades campos
Jardins regatos fontes
Música sol
E eu companheiro
E nós
sedentos receosos na ausência perigosa
Esperando por ti

Que medos que inseguranças transportamos
E no fundo soldadinho
Só nos falta mesmo
É colinho de crianças

segunda-feira, abril 03, 2006

joelho inquietante

Fiz uma série de exercícios continuados
Rijos intensos transpirados
A respiração entupia acelerava
O coração batia
A exaustão chegava

Pousei assim no chão
Em clima de cansaço
(cansada a mente inquieta cala mais)

Em círculo depois de seis ou sete
Eu compunha o corpo no espaço que podia
Fiquei em transe de luz
Olhos fechados
Trocava mão com mãos em toques suaves
Meu Deus como eu tremia

Tremia tanto que um joelho mal assente
Parecia cana verde abanando ao vento
Não sabia se deixá-lo cair
Em perna que sentia
Se quiçá deixá-lo levantar voo tal era a tremedeira

Sorri por dentro mas foi-se o transe
Porque a minha mente acordou
E resolveu ela o problema
Ao decidir pousar o joelho na perna boa que sentia

Foi pena acontecer tal embaraço
Num tempo bom em que o sentir ultrapassa o poema

Mas aprendi não ser fácil saber o que fazer
No simples incómodo de um joelho inquietante
Porque se uma força nos impele para diante
(Vai sente arrisca escolhe)

Há sempre outra a conter-nos o instinto
E nos faz resistir a ele
E nos encolhe

vontade de dar

Ajoelhei junto a ti em gesto humilde
Queria dar-te alguma coisa que quisesses
Mas como saberia eu o quê
Que coisa dar-te
Que coisa alguém como tu poderia receber
Que não tivesse recebido já

E o meu coração
Por querer dar muito
E não saber dar nada
Ficou triste
O meu rosto murchou

E ajoelhado ali ao pé de ti
Uma lágrima rolou
Tinha tanta vontade de dar
A oportunidade também
E não sabia como nem o quê

quinta-feira de Dezembro

Todos juntos vidas separadas
Uma emoção grande que nos traz aqui
Uma mão um olhar que se desejam
Um abraço urgente que nos chama
Uma pequenez que cresce neste espaço

É tão bom que parece que voltamos à idade dos porquês

E atónitos exclamamos:
Diante de mim o quê?
Que faço? Que dou? Que peço?
Desfaço-me e choro e desespero
Confirmo a minha solidão num “não encontro”?
Ou dou graças a Deus por me dar tanto?

É como um sonho bom que nos abre a porta
Porta/coração/amor imenso
E jorram ilusões também verdades
O círculo existe e a candura breve
Unimos coração com coração
Abraço com abraço
Saltamos rimos
Também choramos

Que a tristeza às vezes dói e a vida cansa

Mas o ritmo ajuda
A alma se alevanta
Dói muito mas é mais o que não dói
E a vida avança
O sonho existe mesmo e se o sentimos segue a dança

Só que o tempo aqui é escasso
Tudo começa e tudo acaba num instante
O círculo vai parar
Vai descer o pano
E tantas mãos que se apertaram se tocaram
Tantos corações unidos no balanço
Vão sair de cena
E regressar à mediania da cidade grande
Ao ter que ser de cada vida obrigatória

Apetecia mesmo construir uma casinha
Onde os sonhos que trazemos coubessem todos
Com as lágrimas e os risos e os abraços e os ritmos
Uma casinha flor de Primavera
Branquinha
Onde os nossos sonhos lindos não terminassem nunca.

despe os trapos que arranjaste

Na tua pele e sem disfarces
Sem aquela imagem cinzelada que criaste
Renasce

Esquece os desaires que enfrentaste
Os atalhos velhos que passaste
Os faz de conta
Despe os trapos que arranjaste
Os refúgios onde quem sabe
Perdeste o melhor com que sonhaste

Hoje estás nu
Completamente aberto ao ar ao vento
À rua ao céu aberto à vida florida e não das árvores
E do resto do mundo
Que acompanham as estações

Hoje não chames nada a nada
Nem entendas só o sítio pelo sítio
Cada espaço é grão de areia numa beleza maior
Mais abrangente
Sente essa beleza plena
Fixa o instante

É possível que haja ruptura
Mas deixa que haja
No que te habituaste a ver e contar com mil palavras
Talvez até te assustes com o êxtase novo
Na tua nudez tão completa e boa
E te faltem as palavras

Não faz mal
Há um tempo que está para além das línguas
Dos conceitos aprendidos
E o que se sente é tão autêntico
Tão intenso tão arco-íris global
Que a tua mente pára

Não há palavras

Fecho a caneta com que escrevo
Às dez da noite
Fico só no sentimento
Na descoberta interior
Na atenção plena
Na vida total e abrangente que percebo

caminho de amor e de esperança

Trago comigo os ontens e os nadas
Os porquês sem respostas
Os nãos
A incompreensão dos outros
O que falta fazer em mim

Que mal pareço
Que olhar que faço
Que sentimento descontente que vivo
Que vazio
Quase parado no tempo no espaço
Sem saber se vá em frente
Se continue no antes disto
Ou pior ainda se desista

Sinto este impasse tremendo
No ponto decisivo da rua sem saída
No limiar da porta de entrada

Quase não vejo nada
Quase não sinto nada

Mas a vida prega-nos partidas
E neste holocausto de vida
De esperança perdida ou quase
Ouço uma voz amiga
Que soa dentro da porta de entrada

“Entra e partilha o que trazes contigo”

Eu que não trazia nada
Ouço a voz esforço o passo e mexo
Levo o corpo tão perto quanto posso
E a voz amiga toca-me o ouvido
E entra cá dentro

Remexo exausto em conflito
Entre palavras metidas na cabeça
E o rolar cantado e morno que ouço
Como que uma dança
Por detrás da voz que me chama

Espreito
Atrai-me o que vejo e rejeito ao mesmo tempo
Rio e choro de ansiedade
Sinto medo e tremo
Quem me acode




O medo é mesmo isto
Querer e não querer ao mesmo tempo
Ir e ficar ao mesmo tempo
Estar e partir ao mesmo tempo

É então que uma mão movida pela voz
Talvez a mão da mesma voz não sei
Se estende
Me toca e me acalma

Venço o medo
A solidão também
Tremo nos primeiros passos
Mas ganho alma e entro

Agora sei
Que não volto para trás
Perante um caminho de amor e de esperança

vindimador de cidade

Atino o passo o mais que posso
Com aquele aprumo solto tão difícil de se ter
Desequilibro o aprumo já se vê
Quando caminho
E mais ou menos descomposto lá prossigo

Animo e desanimo nos olhos que me vêem
Tal como em menino em tempo de vindimas
Eu olhava os cestos os cachos as videiras
As raparigas desenvoltas e os seus risos
As escolhas amorosas que faziam

Eu era então videira pequenina
Cabia-me aprender que eu não sabia
Não se pode nascer fazer logo vindima
Sem aprender a equilibrar os cestos fartos na ladeira
Aguentar os pés firmes nos desníveis da encosta

E o rancho era de gente de trabalho
Muitos Verões Invernos semeados
Muita dor e amor nos sóis andados

Tempo adiante
Ou tempo de antes
Pouco importa
O que importa mesmo
É acertar o passo agora

E mesmo que não dê
Para ser bom vindimador como os do rancho
Ao menos que se aprenda
Com humildade
A firmar o passo e a colher uns cachos

estou tão sozinha

estou tão sozinha
dizia a bola vermelhinha num cantinho do ginásio
na verdade tinha frio e o espaço estava tão vazio
que se sentia morta por dentro e por fora

as outras bolinhas não brincavam com ela
talvez não se usasse brincar pensava ela
e teria que se acomodar como as outras
a vegetar naquele cantinho
ou a ter que sonhar para não morrer

os dias passavam tristonhos
a vida parecia não ter fim
nada para fazer nada para contar
ainda por cima era Inverno e estava tanto frio
que custava a aguentar

mas “Deus não dorme”
e numa quinta-feira
alguém se apercebeu da sua solidão
foi ter com ela
as suas mãos tocaram-na
estava flácida arrefecida em desconforto
triste mesmo
triste como um doente bem doente
e o milagre aconteceu


entre vozes sorrisos muita música
assim como num conto de fadas
no mundo imaginário das pessoas
a bola vermelhinha acreditou
girou rodou saltou
qual passarinho feliz e livre
brincou brincou
tão contagiante ficou em movimento
que todas as bolinhas que pousavam tristes como ela dantes
sentiram o impulso a magia da corrente
vieram todas
verdes brancas azuis pretas amarelas
todas diferentes

e formaram com ela
na vertigem do momento
um arco-íris perfeito vestido de vida

balanceando o corpo

Confiança de alma em corpo brando
Suavidade imensa
Calor com calor que bom que é

Fecho os olhos deixo-me embalar
Baloiço vai
Baloiço vem
Sobe que sobe
Cai que não cai
E no balanço sinto-me tão bem

Amparado cuidado entregado

Se o segredo da vida está nas mãos
No toque
No balanço
Se as mãos e o toque dão tanta confiança
Apetece perguntar

Porquê não estamos sempre
De mãos dadas numa roda
E não se toca no outro
De uma forma continuada

Sobe que sobe
Cai que não cai
Neste balancear percebe-se
Que a felicidade está
À distância de um toque
Empurrado pela alma

a descoberta do outro

Fechei os olhos deixei de ver quem via
Tremelicando desequilibrando a espaços
Partia para o escuro dos outros
Assim como quem dava os primeiros passos
A luz escurecia
E maravilha!
Que contornos que traços percebia
Que luz
Parecia de repente
Tudo ter ficado em outra dimensão
Quem seria que estava ali
Tocava-se aceitava-se
Descobria-se
Tudo acontecia porque se partia do nada
Até tropecei no escuro de um parceiro
E que riso ouvi
Em nada parecido com um riso corriqueiro
Logo a seguir ao desatino do tropeço
Uma mão
Devagarinho
Talvez com medo de estragar
Contei nela todos os dedinhos
(cinco)
Quando cheguei ao último
Meu Deus o que sentia
A minha mão perguntava à outra
Se estava bem na minha
Ao que a outra respondia sem falar
Apenas apertando recuando e dando
E a conversa acontecia
Sem luz artificial mas com mais luz que em sítio nenhum
Que encontro
Entre duas mãos descobrindo-se no escuro
Tão bem estavam
Que perderam o sentido dos donos
Queriam lá saber dos donos
Queriam era ficar ali
Cuidando-se
Conversando rindo
Tocando tudo o que tinham para tocar
Porque elas sabiam
Que quando os donos abrissem os olhos
E as levassem dali
O mundo que as esperava
Era um mundo diferente e não havia mãos assim

cuidar do outro

Cuidei quanto pude quanto eu sabia
Vénus luminosa e linda por cuidar
Percebi ali o escultor apaixonado absorto
O traço o toque o ar estupfacto
A beleza que é
A mulher estática e dada
O fruto perfeito
Para o homem sensível devoto suave
Que habita o génio


Como escultor que não sou
(Falta-me génio e arte)
Eu fazia o que podia
Os dedos tacteavam percorriam
Sufocava sem saber aonde ia
Tinha medo sofria
E como eu tremia meu Deus


Era muita a água que corria
Fonte mulher que me fazia sede
Encolhi o tacto evitei o gesto
Tive medo de beber
Ser condenado

Pobre coração delicado e ingénuo
Porquê tanta contenção
Porquê a razão nos faz uma coisa destas
Porquê o amor tem de sentir-se condenado

Apetece dizer que somos mais do que parecemos
Apetece ensaiar uma conduta diferente
Apetece vencer amarras preconceitos
Porque o medo é implacável com quem se deixa intimidar

E eu só posso dizer
Porque não sei fazer melhor
Vénus mulher perdoa
Sou pouca coragem para tanto esplendor

o céu que és

Era tempo de cuidar e eu cuidava
Mulher linda estática quase inerte
Abandonada em graça para mim
Os meus olhos fechavam-se e abriam
Deslumbravam-me a mim com o que viam
Semicerrados em penumbra inebriante

Eu respondia
Pondo alma e coração em tudo o que fazia
E em movimentos largos
Outros pequeninos
Erguia o corpo e os braços

Crescia tanto
Que sentia curto o espaço
Para a minha nova dimensão
Depois descia
Flectia para baixo
Percorrendo caminhos de sonho e de magia

Ela continuava em sentimento
Estática abandonada
Linda
(Sol que eu tocava quente quente)
E meu Deus como queimava

Eu tremia
Transpirava
Suspirava
Inspirava
Expirava
Mas lá ia
Tacteando sempre
Qual ceguinho em noite de luar de prata a descobrir

E nos passos que dava
Incertos vagos inseguros
Ensaiava
Um momento tão intenso tão bonito
Que só posso dizer
Um momento assim
Será abraço terno com sabor a sempre
Que não esquecerei nunca

uma luz de abraço e de sonho

Há dias assim
Parece que não acontece nada
E acontece

Lá fora Inverno frio
Fevereiro
O Céu cinza o mar o espelho dele
Ruas desertas um barulho solitário
Um vazio enorme que até arrepia a alma

E quem diria
Não longe desse Inverno frio
Desse Céu cinza e mar igual a ele
Que havia um dentro
Um aqui
Uma luz intensa a iluminar-me todo

Uma luz de abraço e de sonho
De carícia
Que fala de flores de amores de Primavera
E basta sorrir
Pôr na face uma cor de laranjal e mosto
E tudo fica quente e consolado

Corpo mulher olhar rubor e sentimento
Divino interior
Que transborda e envolve
Tão divino
Que apetece entrar e ficar nele

Abraça-me e aquece-me
Guarda-me se puderes
Porque se o fizeres
Não haverá coisíssima nenhuma
Que me apoquente

Nem frio nem medo nem má sorte
Nem pesadelos
Haverá apenas um som suave
Um eu e um tu fundidos
Num tempo eterno a passar
Sem se dar conta

vou não vou

Tremendo a voz tossindo entupindo
Vou não vou
Devo não devo
Sou não sou
Que dou que tenho
Assim vou eu

Na última curva que faço
O embaraço cala ainda mais
Aperta o peito
Dói se dói
E repito

Vou não vou
Devo não devo
Sou não sou
Quem sou que tenho

Serei mesmo eu quem vai aqui
Ou um artifício que nada tem a ver comigo

Mas enfim o carro pára
E é entre noite e claridade
Que esta mente crítica céptica
De um momento para outro vira festa

A minha imagem esvai-se
Cala
Fico eu
Autêntico criança brincadeira
Em abraço mais abraço
Roda com roda
Um beijo um rosto uma carícia
A roda cresce
Há companheiros

Sorriso aberto em ti mulher que és vida
Flor amparo ninho
Novidade permanente em manhã celeste

Agita-se fogo em fogueira grande
Há arraial há gente
Há música no ar
Há amor
Caminha-se a dançar
Dançando se caminha

Há perfume de flores
Há campos prados giestas
Sente-se o mar quando se sente
Ora calmo ora agitado
Ondas redondas
Sal
Sensualidade

Ai que embalo que sinto companheiros
Que mimo
Que mais parece um regresso verdadeiro
Ao colo de menino

terça-feira, janeiro 10, 2006

menina de Valbom


a dois passos de Pinhel cidade tu nascias
num sítio de vinhas sementeiras
roseiras bravas silvas com amoras
veredas campestres
cantares de romarias
muitos prados ao redor de uma ribeira
num casario pequeno
Valbom assim se chamava o casario
tu eras linda
sobretudo o olhar gaiato
que no colégio dava para tirar a vontade de estudar
diria que foste o meu primeiro caso sério
a minha vontade de crescer
a minha ilusão bonita
a minha primeira necessidade de escrever
vê só que foram para ti as minhas primeiras cartas
(três)
e a nenhuma respondeste
ainda bem
não tinha arcaboiço para ti
faltavam-me anos
e acabaste por ficar na minha vida
com um lugar que ninguém tem
um mito
serás seiva e flor
sempre
pedras e rio
sementeira
olhos que me viram
de sacola
que me ensinaram a amar
e a crescer
trabalhavas em Lisboa no mesmo prédio que eu
quando a doença foi mais forte
e te levou
raios
que revolta
que tristeza triste que senti
que impotência e que dor
nasceste assim para eu te ver
viveste
e voltaste mesmo no fim
para que os meus olhos te vissem
desaparecer
se onde estás puderes ler estes versos
(penso que não)
mas se puderes
menina de Valbom
não digas nada
não escrevas
não chores nem me faças chorar
deixa só o teu olhar
num qualquer lugar
a fazer brilhar o meu

amanhecer tardio

o amor é quem nos leva
para onde seria impossível ir
não conta a distância o estado do tempo
a cama
o sítio
nada existe que não possa ser adiado
esquecido
e nos impeça de partir
levei tempo a acreditar nisto
com padrões de inocência que trazia
exemplos de triunfo dignidade
contenção
acreditava
que o dever o esforço o querer
a própria imitação
me levariam
aonde só nos pode levar o coração
acreditei que podia ser assim
e o mundo que criei
parecia ter futuro
mesmo quando eu já tivesse pouco
foi então que parei e me dei conta
que mais importante que fábricas
armazéns
casas recheadas de valores
relações importantes (também ocas)
o mais importante mesmo
é ter alguém que faça pulsar o coração
que só por estar perto
faça com que tudo pareça leve
e bom
e fácil
neste deserto
o resto não conta
porque tudo acontece como um bater de asas

dia dos namorados

chamar-te mulher
amiga
companheira
chamar-te mãe
Lisboa Tejo
um porto
uma cais
chamar-te meiga
terna
doce
porta aberta
chamar-te simplesmente
coração
ou barco
ou dizer que o teu abraço
tem assim o tamanho do mundo
é sempre pouco
que ondas me levaram até ti
que rios
que caminhos
que sorte tanta
eu navegava num deserto
sem barco sem remos
pior sem rumo
tu apareceste e foste a ponte
o caminho certo
olho para trás
e quando penso
que um qualquer piquenique
que nem estava para acontecer
aconteceu
e me deu tanto
só posso repetir vezes sem conta
Sintra meu amor
cumpriu-se vida
Rossio
Lisboa
namorada mulher
mãe dos meus filhos
não terei tempo
para agradecer tanto

Publicação em destaque

Livro "Mais poemas que vos deixo"

Breve comentário: Escrevo hoje apenas meia dúzia de palavras para partilhar a notícia com os estimados leitores do blogue, espalhados ...