quarta-feira, novembro 30, 2005

um objecto apenas

se eu não falasse
se não sentisse
se não visse
se fosse apenas um objecto
parado na calçada que tu pisas
se o vento soprasse e eu fosse leve e levantasse
na brisa
e fosse apenas o que era
uma coisa que abrigasse nada
já não sofria
já não pensava
nem via o que queria e o que não queria
tu poderias pisar-me
não sentiria
tu poderias dizer tudo
não ouviria
não amava
não chorava
não ria
apenas existia ao sabor do vento
para quem quisesse pegar em mim
ou não quisesse
e poderia inutilizar-me simplesmente
que eu nada mesmo nada
sentiria

o meu pai foi alguém

desço as escadas sobre o asfalto
a cidade grita
vêm barulhos de tudo o que mexe
perto ou longe
longe ou perto
apresso o passo vozes quase me rodeiam
na ânsia apressada de chegarem
parte um autocarro
e logo outro
uma grua descarrega ao lado
detritos nauseabundos
colhidos num aterro
que faço aqui?
que faz toda esta gente
absorvendo ecos apressando o passo
num espaço hostil
feio
onde não cresce sequer erva daninha
nem se vê o céu
nem o sol
tanta gente neste sítio de ninguém
quem se conhece?
quem?
o meu pai viveu na terra
morreu nela
e fez bem
era ele e pouca gente havia além dele
e tinha nome e sítio e horizonte
mandava nele
virava o leme para onde queria
aqui onde estou
olho à minha volta
além
ali
para este labirinto enxameado
anónimo atrapalhado
e simplesmente sinto
que o meu pai sim
foi ALGUÉM

flores de rosa tantas vezes

apareceste disfarçada em sol de inverno
vida por nascer
embrião de tudo por abrir
havia em ti o deslumbramento das neves dos glaciares
dos verdes mais abaixo debroados em castelos
havia um mar de prata cristalino
os sussurros longínquos de uma felicidade estranha

o sol não era quente
mas às vezes meu Deus aquecia mesmo
nasciam flores de rosa tantas vezes
nesse imenso horizonte inóspito e branco

o vento soprava sempre
e o sonho quente
o coração quente
arrefeciam
tal a intensidade e a força tempestiva das rajadas frias

eu sabia que não podia plantar um jardim do sul
naquele lugar
eu sabia que não podia colher ali um cacho de uvas
um brinco de cerejas
nem sentir o aroma da flor de luz saída das mimosas

mas o vento era forte e perdi a ideia das coisas

vestia-me de inverno se havia tempestade
vestia-me de roxo quando o degelo já tardava
vestia-me de branco quando a esperança morria
dava tudo a este sonho vestido de inverno
mesmo o calor que já não tinha

foi lonjura a mais para um rio de silêncio pequenino

acabei por achar a resposta no tempo
e quando a achei morri bastante

terça-feira, novembro 29, 2005

Cume/Vila Garcia

numa aldeia sozinha
fria e pequenina
já longe na memória
havia uma escola
ruas com granito
uma professora linda

também havia
uma criança que aprendia
com as outras
as primeiras coisas difíceis de aprender

a criança aprendeu
cresceu
e essa criança que não é mais criança
teve hoje a notícia triste
de que a professora desse tempo
que lhe disse coisas
que lhe deu pão
que a aqueceu no frio
morreu

a criança que não é mais criança
sentiu tanta pena
como se fosse
um pedaço de mãe

e verteu por ela
uma lágrima de sangue

que segredo tu és

que saudade incontida que sinto por ti
que desejo que tenho de te ir buscar e viver em ti
que afecto tu tens que me perco com ele
e desperto
feliz

que segredo tu és
que ficas sem estar
que prendes sem querer
que pões a minha alma agarrada a ti

só me apetece ficar e partir contigo

deslumbramento português

Alípio sonhou
Alípio teve
mas o sonho era tão grande
e o mundo em Abravezes tão pequeno
que a dor logo chegou depois do amor

um amor que vestiu contos de fadas
tecidos suaves
brancura e lãs macias
cabelo doirado de anjo
em pedras rudes e contos inventados
de um coração totalmente oferecido e sem reservas

um amor que misturava a fantasia
de quem se dispunha a amar sem aprender
com uma realidade contida
de quem sabe o que faz quando se dá

o sonho aconteceu como acontece a cada português
a desilusão também

com o cair das primeiras chuvas
adivinhava-se outono em Abravezes
depois inverno rigoroso
porque quem dá tanto
em tamanho deslumbramento
vai pagar caro a falta do objecto que o causou

e pôr assim a vida em desatino
dar-se cem por cento
é exagero e pode causar dano

de tal forma
que só se for recuperável o erro
se poderá aprender com ele

ciúme


falava contigo altas horas
as palavras saíam perturbadas
eu queria dizer-te que te amava
e que era grande o ciúme que sentia
mas era doentio o conteúdo
nem parecia eu a pessoa que falava

tu olhavas com olhos incrédulos
porque quase te chamava puta
a ti que podes não ser santa
nem anjo
nem flor
mas seguramente nunca foste uma rameira

a vergonha encheu-me a madrugada escura
ainda gritei para ver se os teus olhos fixos compreendiam
ainda berrei desculpa
implorei
mas os teus olhos ficaram tão vazios
tão zangados
que saiste do carro
muda magoada e só

a garganta secou em nó enorme bloqueando-me a voz
o meu esforço desfaleceu
e com os olhos semi-mortos
semi-loucos
vi-te sumir na primeira curva
entre sons histéricos de carros barulhentos
e corpos oferecidos da noite

sabes

sabes
quando olho os teus olhos
quando olho cada recanto de ti
sinto que o mundo está todo ali

descubro sempre coisas novas
és como um mapa
um livro
um pedaço do meu olhar saído de mim

um pedaço da minha alma
vertendo uma lágrima na tua

vertendo também um sonho
de eternidade

caçador de labirinto

inicio sempre o mesmo ciclo
entusiasmo sonho nuvens
alguma realidade
uma noite mais longa
pensamentos imprecisos

como que a minha felicidade se esgota
em um qualquer labirinto

qual gato tentando caçar um rato
consegue salivar quase o alcançando
vai de buraco em buraco
chegando mesmo a tocar-lhe o rabo

mas nada

um gesto menos perfeito
uma incapacidade inexplicável
e o rato foge sempre
deixando o caçador esgotado
sem vontade de caçar

mas como é caçador
coitado
volta outra vez a caçar
e a errar

como que a felicidade do gato
como a minha
se situa no engodo da próxima caçada

perdida no desejo

andaste pela noite perdida no desejo
tudo sabia bem porque era novidade

o homem boçal que te levou na dança
que te deu vinho
que te deu fumo
foi o mesmo que te levou pr'à cama
que se riu de ti
que se afastou de ti
porque não tinhas mais nada para dar

foste um corpo apenas nada mais
despojado de tudo
de honra
de glória
de palavras
ainda pior
de amor
de alma

só posso sentir pena
não do teu corpo
dos orgasmos que teve ou que não teve
corpo é corpo e a noite já passou
outras haverá e passarão também

tenho pena é de ti
porque falei contigo e eras linda
ria só por te ver rir e te querer bem
tinha gesto e olhos para ti
e coração
fiz da minha mão a tua mão

cheguei a ter um sonho em que coubesses

atracção inevitável

transbordava de impaciência
o cansaço provocado pelas palavras
toldava a sabedoria

nada salvava a situação
caída num silêncio exausto
pedindo um aconchego de corpos
e o fim de uma tensão acumulada

quase me caía o copo que segurava
quase funcionava sem presisar de fazer nada
quase parecia por instantes
o menino de minha mãe

que força que se guarda na ansiedade
e que fraqueza também

que fome e que raiva ao mesmo tempo
que pudor social
que contenção impossível
no acto necessário quando tarda
na demora da atracção inevitável

domingo, novembro 27, 2005

menina de Lisboa


vejo-te passar menina de Lisboa
mesmo ao pé de mim
desenvolta e engraçada
elegante e desejada
fresca
como um amanhecer de orvalho
nos prados e nas eiras

como uma casinha branca

e quando passas
o ar que sai do espaço onde caminhas
parece vir beijar-me
e gosto

és assim como uma seara abanada pelo vento
bonita pelo sol quando está grada
loira
estonteante
com razões de sobra para encher a vista

quando passas
menina de lisboa
os meus olhos são todos para ti
ganham brilho
como um cometa rectilínio e brilhante
que na trajectória se ilumina muito

depois desaparece
murcha
entristece
talvez pela saudade
de não estares sempre a passar

baixa por um mês

Albano estava como não estivera nunca
gasto farto estúpido
e após vinte anos de carreira
viu chegada a hora de meter baixa

o sítio em que trabalha e que partilha
com três mulheres iguais ao mobiliário
levaram-no a sentir pela vida
um fastio uma alergia inexplicáveis

queixara-se dos ossos
o médico acrescentou cansaço
e naquele ambiente de médico de família
mal sabia que tanto mal
o levaria
a uma cura total na Consolação

o iodo o mar o sol faziam bem
também a praia recheada de flores
que teve de ir vendo aos poucos
não lhe fossem criar incómodo à vista

e foi naquele mundo de flores
mergulhando esbracejando
pavoneando a falta de roupa
que Albano teve relações com uma americana

nesse dia não dormiu
teve receio de perder o juízo
habituado que não estava
a que lhe acontecesse na vida qualquer coisa

a baixa era só de quinze dias
essa a grande preocupação
mas com a maré de feição
veio num pulo a Lisboa
alargá-la para um mês

e conseguiu

telefonou ao chefe e compreendeu
em primeiro lugar a saúde de Albano
também o médico preferiu
a cura total à meia cura

e o nosso homem regressou

com o papel passado por um mês
mudou de cor
e ganhou brilho

falava e dava
recebia
comia mexia corria

e a Consolação testemunhava
dia a dia
uma cura total de banhos
num aconchego visceral
luso-americano

a tua mão

só via chão
contornos enviezados de betão
ruínas
um cheiro a morte
palavrões que não faziam sentido
acho que estava no mundo dos mortos-vivos

não sei se abri os olhos fechados pela vigília
colados para não querer ver mais
não sei se me chamaste
não sei o que aconteceu comigo
não sei o teu nome

só me lembro da tua mão
naquela noite por amanhecer
estendida
tão frágil quase como eu
mas estendida
a que me agarrei
e que me salvou a vida

um lugar português

planalto agreste
desolado
frio e vento vertendo serranias
um sopro de lonjura vindo de Castela
uma lonjura imensa entre a minha aldeia e o mundo

nasce-se e morre-se e pouca gente dá conta

faz-me pensar um lugar assim
que quem nasceu nele
e o viu seco pelo sol
abanado pelo vento
só pode amá-lo muito
ou fugir dele

afinal ser português é isso
ficar e partir

e não é menos português quem parte
nem ama menos o lugar

entre ele a distância e o chegar
cresce um espaço enorme
(sentimento prtuguês)

porque ficamos sempre ali
e estamos sempre longe

dona menina gaja

um telemóvel em cada ouvido
voz bem colocada
um jeep enorme em cima do passeio
dona Menina Gaja
ia toda em cima da vida

como se tudo o que soubesse fosse
que só existia ela
não importava o que fazia
nem como
desde que o ego dela se salvasse

e avançava
ameaçadora e inflexível

já no balcão do café
exigia de quem a atendia
uma atenção quase tuberculosa
à sua voz
se não arriscar-se-ia
(o escravo do lado de lá)
a levar com segunda dose

percebi na vertigem de um minuto
problemas terríveis que enfrentava
comendo e falando aos telemóveis
não sabia se bahamas
se cuba
se república dominicana

se a festa era de noite
se de dia
se o programa metia strip-tease
ou não metia
se ia buscar a criança à escola
ou se não ia

tentei ouvir e concentrei-me
mas bastou uma ligeira distracção que tive
e quando o meu olhar quis recuperar
e correu do balcão para a rua
para a encontrar
já só vi a traseira do jeep
em jeito de traseira de rinoceronte
zarpar e fugir

apetece abraçar-te

contigo há sempre tudo por fazer
tudo por contar
as palavras amontoam-se na boca
a alegria nasce para não morrer nunca

apetece ser da tua equipa
vestir a mesma camisola
prender-te
como uma criança faz ao que ama e não quer mais largar

apetece abraçar-te
porque sinto que tens um abraço de mulher e de anjo

terno e quente
branco e envolvente

apetece que não aconteça nada
para não te distrair
e que fiques presa a mim
como se eu fora um brinquedo bom
um mago
um pedaço de luz intensa e hipnótica

e seria bom que fosse
porque no dia em que partisses
eu havia de lá estar para impedir-te
havia de ser a estrela incandescente
mágica
que te atrairia para sempre

silêncio perdido no grito


as nuvens estão baixas
o ruído da chuva sobressai
nas vidraças amplas do escritório

há caravanas de campanha política
com sons conhecidos
vozes e alaridos
que se vão perdendo
engolidos pelos combóios rápidos
pelos aviões
pelos ruidos ininterruptos
de roncos de motores
pelo pisar de pneus no asfalto da avenida

há ainda sons histéricos de sirenes
outros gritos necessários
que interrompem o patamar normal de decibeis

observo atento o meu silêncio
e o contraste que ele é no contexto da cidade

é um silêncio perdido no grito

parece às vezes que transporto comigo
a minha terra
e o deserto que ela é

lá qualquer ruído se esgota no silêncio
ao contrário daqui

sábado, novembro 26, 2005

mergulho na memória

fecho profundamente os olhos
mergulho na memória
há retalhos de mim por tantos lados
parecem vidas distintas
pequenos excertos
aqui ali acolá
com pétalas e cardos
consoante Deus estava mais ou menos lá

por aí disperso
apenas o núcleo de referência
me tem mantido uno
e fiel a um caminhar principal

o tempo será quem faz o resto
não fico em lado nenhum porque ninguém fica
irei não sei bem onde porque ninguém sabe
mas sei que terei que ir para qualquer lado

que será da memória toda
que é luz e vida e som
e gente muita gente
quando não existir o ser que a ela se ligou?

Curitiba meu amor


na minha nau
num mar de tempestades
medonho o vento
feroz a vaga
meu coração será a chama
a coragem necessária

e como estás aí
sonho atlântico
ninfa doce celestial
tua voz quente e tropical
me guiará

serei teu descobridor
tu alguém no Paraná por descobrir

e entre Curitiba e Lisboa
todo o sentido das coisas

o amor a saudade e a distância
nau e sonho
longe e perto

Curitiba meu amor
eu te prometo
que estarei sempre a chegar

quinta-feira, novembro 24, 2005

acomodados

tenho sopa tacho e guardanapos
não me divirto nem amo e ando triste
fico porque não quero correr riscos
tenho a cabeça feita para não variar nada

o cão da rua vê-me passar
e como cão velho que é e experiente
conhece-me por dentro e por fora
o meu silêncio
o meu passar quase transparente
o esforço que faço
o intervalo que sou entre dois nadas

também o conheço a ele
almas gémeas de um mundo semelhante
em que mais vale comer e calar
do que ladrar

quem ladra mais é quem tem mais língua
e mais galões
"manda quem pode obedece quem teme"
eu e aquele cão não passamos de dois reflexos
a quem as donas retiraram os sexos

somos dois enfeites para elas
conformados
querem-nos para não fazermos nada
nós habituamo-nos
dormimos roncamos
e ao menos assim
nem ele leva tareia
nem a mim me falta a sopa

pedacinho de ti

entre o top que usavas e a sainha
vi um dia
um pedacinho de ti
que não mais esqueci

falavas
eu tentava acompanhar
a voz e o gesto
num esforço visível
incapaz de me concentrar

ouvia como podia
seguia o teu olhar
baixava e levantava os sentidos
sem conseguir atinar

céus que impaciência
que maneira de sentir
que forma de desejar

quem sente assim
quem deseja assim
só pode achar o resto escasso
e a sua existência nada

era como estar no escuro
e espreitar por um qualquer furo
toda a luz
um pedacinho de ti
alvo e breve
com todo o sabor a mel
a doce
e a sal

compreendi ali
que espreitar não é o mesmo que agarrar

até o leão sabe isso
em abraço mortal
agarra a presa boa
e fica nela
porque ele sabe que a presa foge
e se não lutar por ela
qualquer outro caçador
a vai caçar

sempre o adeus


habituei-me a vê-las
mãos a acenar
ficava a contemplar os carros na estrada internacional
e por entre o desolado da paisagem
o futuro agreste
os meus olhos entusiasmados sorriam
mas o meu peito de menino sofria
porque a gente que me via e que eu via
era gente que passava
e que não mais veria

no caminho velho
ouvia-se um gemido de carro de bois
trepava a encosta
e soava uma voz campestre
que berrava assim
"ah qui à macho
anda mula"

percebia o contraste que via
então voltava o rosto e corria
como navegador sem idade
para fazer um mar na estrada asfaltada
construir um barco e largar

habituei-me a viver perdido na distância
num lugar pequeno mas cheio de horizonte
e punha como podia o meu coração no mundo

o melhor de mim está aí
quando digo adeus e quero embarcar
quando fico e não vou
quando vou e tenho de ficar
amo mais todos na vertigem da passagem

hoje em Lisboa sinto o mesmo que senti na Beira
berço rude
estrada internacional asfaltada
digo adeus a alguém que não é português
choro num fado da Amália com guitarras

regresso sem futuro

as nuvens baixam no inverno
estreita-se o cerco entre a terra e o céu
em frio intenso e terra agreste
não há idade para manter a lareira acesa

o gato mia sobre pedras centenares
parece vazia a casa antiga
que foi grada e teve voz

no fundo da ravina
o ribeiro vai correndo
o murmúrio é o mesmo outras as águas

também na capelinha do monte
há mãos rezando
o mesmo fervor outras as mãos

detenho o olhar no caminho desolado
coberto de silvas e de giestas
outrora formigueiro de gente e de algazarra
que levava à sementeira

seco por dentro e por fora
ponho a cara na distância
e parto sem olhar para trás como fazia dantes

nunca senti tanto
tanta falta de futuro

tão perto

nunca os teus olhos me pareceram tão claros
nunca te tinha visto tão perto
nunca estive tão próximo do princípio e do fim
nunca desejei tanto a expressão do teu rosto

nunca estive tanto tempo dentro de ti
deixando-me ir
segurando-te o corpo
colando um beijo nos teus lábios doces
na lágrima pequenina
no mel dos teus sentidos

nunca me apeteceu tanto viver e morrer
ficar ou ir contigo para sempre

guerra de audiências


à hora do jantar na televisão
passavam os horrores mais perversos
deste mundo cão
casos de guerra arrepiantes
gente sem nada
nem abrigo nem pão nem água
pessoas atacadas queimadas
mutiladas com ácido sulfúrico
uma grávida violada
um desfilar de tanto mal que ultrapassava quase a ficção

e a minúcia era tal
que o choque e o nojo do que via
me tirou o apetite do bacalhau com grão de bico que comia
cansado de tão perverso realismo
desci os olhos ecrã abaixo
vexado envergonhado
tentando fugir naturalmente daquilo

quando saía
não deixei de ver em rodapé
um anúncio ilustrado de um próximo programa
na mesma televisão
que mostrava gajas e gajos em cuecas
uma piscina
a antevisão de um requintadíssimo deboche

fez-se um intervalo para publicidade
eu desliguei aquela máquina bizarra
quando já desfilava um anúncio que mostrava
neve
pai natal
e um combóio resplandescente
transbordando de brinquedos

fui dar uma volta pela noite fria de Dezembro
pensei muito no Menino Jesus

contemplando

olhava as ondas rebentar contra os rochedos
os meus olhos abrangiam a costa toda até deixar de se ver
imenso era o céu em cima
que emprestava silêncio ao barulho do mar

numa espécie de promontório
tentava esticar os sentidos para lá do que se via
sempre na ânsia de poder ver mais
e talvez no engodo de que algo de belo pudesse acontecer
punha-me em bicos de pés
quase caía
esquecia tudo
mas nunca acontecia nada

o mar é mar e o céu é céu
o promontório é apenas um conjunto de pedras grandes
e se há deusas no mar
sereias
ondas de prata a envolverem anjos
nunca as vi

a coisa maior que me ocorre sempre
quando faço isto e me ponho a olhar o mar
(que encobre até um certo desencanto)
é a memória do Infante
e do que ele deve ter visto e sonhado
entre medos e nevoeiros cerrados
olhando este infinito mar
depois mundo português

adorável anna kournikova


se fosse fácil
se tudo se cumprisse assim
num estalar de dedos
como eu quisesse
se nem precisasse de falar e tu aparecesses
se pudesse pedir-te um momento apenas
dos teus momentos tantos
sonhados
apetecidos
imaginados

se fosse fácil
sentir-te perto
o movimento
o sorriso aberto
o jeito simples
sei que bastaria
para que a magia acontecesse
como nos contos de fadas

só que nos contos de fadas o tempo escapa
e os personagens são bonitos de mais porque não são verdade
contigo queria que não fosse assim
queria que existisses mesmo
e que o momento que me desses ficasse suspenso no tempo
deliciosamente eterno

deveria Deus fazer o milagre da unicidade
para continuares única
e em simultâneo
tornar-te omnipresente
para que pudesses ser também só e de cada um

porque és linda demais para não se dar conta
porque é uma perda seres tão pouco para tamanho amor universal
porque a luz que tens é bem do tamanho das estrelas todas
porque para lá de ti não existe sonho

assunto sério em meia rima

a inocência de Filipa
não era o que parecia
porque ela ouvia ouvia
mas ninguém levava nada

tinha sempre uma maneira
de afastar os mirones
fingia não perceber
ou percebia fingindo

o patrão ficou difícil
fazia chantagem com ela
mesmo assim já resistia
há quatro meses de assédio

Filipa não tinha culpa
de ter o corpo que tinha
pois lá dentro era ainda
uma ninfa uma anjinha

o que apetecia a outras
a ela não apetecia
não tinha ainda maldade
por isso se defendia

até que um dia de Agosto
a loja estava vazia
o patrão andava louco
só ela lhe apetecia

fechou a porta da rua
encontrou-a no armazém
as intenções que trazia
não enganavam ninguém

chegou-se aonde ela estava
as roupas curtas e leves
depressa ele as rasgava
com toda a força que tinha

na cara dela estampou-se
a raiva o ódio o nojo
lutou berrou mas cedeu
nas garras de Varatojo

ficava ali a inocência
a violação consumada
algum sangue da ocorrência
a lei da selva provada

quase indiferente

absorto
num sítio que não conheço
não me sinto de acordo
nem de bem comigo
as vozes que ouço
o movimento que mexe
ainda mais me entristecem
não me sinto dentro
nem fora do ambiente

abraço envolvente

o meu desconforto
os meus nadas
contigo os transformava
em coisas boas
bastava que estivesses ali
e arquitectei a ideia tola
de te ter quando quisesse
quando o vazio apertasse
serias a reserva para lá do nada
o lameiro de pasto cheio
quando a seca fosse cruel
e ameaçasse morte
serias a espiga grada
quando me apetecesse colher
e sentir o fruto bom que a vida é
estarias na terra para lá de tudo
até mesmo para lá de mim
serias sol luz e horizonte
do meu cimento
do vegetar repetido
dos dias sem sentido
das noites longas
e tu lá estarias sempre
no final do pesadelo
oceano fantasia
lugar cativo
abraço envolvente
quente quente
que havia de ser tão real
quanto a minha imaginação quisesse que fosse

esperar

perturba o tempo grande que não passa
mesmo sabendo que a corrida é curta

esperar é terrível
cansa mais esperar muito do que andar muito
talvez se sinta mais o medo de ter medo
a fobia do espaço e do vazio

talvez se tenha medo de sofrer
porque perto vemos mais as maleitas dos outros
e também as nossas

estar bem onde se está não é nada fácil
sobretudo se se está parado
à espera não se sabe bem de quê
e se tem consciência disso

diminuir abismos

é mágico para a criança
que brinca no riacho
subir o fio de água aos solavancos
chegar à ponte e atingir a outra margem

há um riso de vitória quase sempre
um acenar de braços
triunfante
porque a criança sabe o que a ponte vale
e a alegria que é
dominar o precipício
vencer o isolamento
poder juntar-se aos meninos do lado de lá
e brincar com eles

que bom seria
que os adultos percebessem isto
e fizessem pontes
muitas pontes
para diminuir abismos
espalhar sorrisos
e aproximar abraços

quarta-feira, novembro 23, 2005

algures num canto da cidade

quando se deixa a via larga em roncos de motores
velocidade estonteante
entre torres de cimento a perder de vista
já mesmo na curvatura onde os carros somem para baixo
um velhinho pede esmola aproveitando os semáforos

se mais nada houvesse para dizer
se outra importância não tivesse
aquela presença humana
bastaria o contraste que ressalta
olhando para ele e para os outros
para valer a pena estar ali

de um lado
uma fragilidade autêntica
envolta em farrapos que a vida lhe deu
um sorriso que ainda existe para agradar aos outros
a alguém que se interesse por ele
e não o deixe morrer

do outro
vultos empertigados sem expressão no rosto
nem em sítio nenhum
sem olhos para ver
nem coração para sentir uma situação humana

mais parecem mortos estes vivos que passam
se calhar nem eles sabem porque ficaram assim

no rio da minha terra

deitado no leito do rio que corria
guardava bem dentro de mim
o barulho bom das águas em cascata

ao meu lado
um lençol de natureza
misturava pedras
com erva
com arbustos
com perfumes da terra

deixei-me estar
parecia que as águas em cascata
vertiam dentro de mim
fios de água reluzentes raiando em sol de prata

senti-me oco
como se apenas tivesse
uma casca moldando o corpo
abandonei-me completamente
ao silêncio de sons pequenos e campestres

que pura e cristalina era a água que corria
que prazer total sentia
imaginando uma lavagem visceral

todo o meu ser sacudia
a pouco e pouco
o cansaço urbano
a coisa má que nos tira o sono
e o resto

cem anos que eu viva
nunca esquecerei o rio da minha terra
e o bem que faz
quando gostamos dele
e temos dentro de nós
espaço mental para estarmos só ao pé dele

nevava

nevava muito na terra da minha infância
o branco e o frio
o chão escorregadio
a água por correr
o telhado
com gelo pendurado
que piada que eu achava
que descoberta que aquilo tudo era
até na escada de fora
vidrada
gelada
a queda dada sabia bem
tudo se fazia sem pensar em nada
não era importante não haver água
o importante era a novidade da torneira
gelada
a queda dada que fazia rir

terça-feira, novembro 22, 2005

desistir

não dá fugir da barafunda
dos enredos
das ruas apertadas
apinhadas
das coisas por fazer
das incapacidades globais
das angústias de não sermos capazes
dos movimentos instintivos
repetidos
que não dependem só de nós
não dá sair pelas traseiras
e dizer adeus à rua principal
não dá ficar no tempo de outro tempo
num qualquer lugarejo sem presente
não dá fugir do medo
porque ele corre atrás de nós
não dá ficarmos a falar sozinhos
ou simplesmente fecharmos os olhos
porque
pode não gostar do que se vê
mas o melhor é ver
pode não se gostar do que se tem
mas o melhor é ter
pode até não ser fácil evitar fugir
mas sentir medo e fugir por isso
só por isso
cuidado
que o tiro pode sair pela culatra
e na esperança de um conforto
pode suceder
que nunca mais tenhamos paz

sentir Portugal

não consigo fazer o caminho de França
sem sentir um arrepio
mais quando vou
e fica para trás a distância
e um país
um povo e um destino
um fatalismo necessário
sentir Portugal ali
é sentir nau aldeia mar
uma tristeza imensa
também raiva e dor
uma vontade de chorar
porque acho que nascemos para ser maiores
como não somos
e temos que atravessar a Espanha
depois a França até Paris
há grandeza e pequenez que se confundem
há nobreza e singeleza em cada olhar
há um grito obrigatório dentro de cada português
depois a inconstância de algo por achar
um desejo de ser e de não ser
uma amálgama de amor e desamor que se confundem
o caminho de França é onde Portugal melhor se encontra
bastava isso para eu gostar dele
Portugal feito de sonhos
e de feitos
de sítios andados
encontrados
e de gente que vale tanto
e é tão grande
que fez de um espaço pequeno
tantas vezes esquecido
uma odisseia que tem bem o tamanho do mundo

silêncio e esperança

o vento às vezes solta o norte
sinto um arrepio
é tanta coisa que ele me traz
que fico a pensar
na janela em Lisboa escancarada
se aquela lufada de ar prenhe de tudo
gente
recordações
imagens
palavras
lugares
se tudo apenas valeu o que valeu
teve o sabor que teve e mais nenhum
se quando eu fechar esta janela
e virar silêncio
pequenez
nada
quando já não ouvir o silvo do vento
nem sentir a minha fonte
onde ficará tudo o que existiu comigo?
esse espaço imenso
único
a semente o fruto o esplendor o sofrimento
o espaço ocupado com os passos e com a ideia
vivido
tantas vezes transformado
virará vazio assim sem mais nem menos
como um simples fechar de uma janela?
no mínimo
acharia um enorme desperdício
e custa-me a crer
que Deus nos fizesse uma coisa dessas

dançávamos pela noitinha


dançávamos pela noitinha
a música ecoava sons languidos
de guitarras
vozes tão acertadinhas
que eu e ela e a música
formávamos um único sentimento
tão forte
tão intenso
que não era preciso fazer nada
para que o corpo e o resto ganhassem movimento
o vestido dela era de uma seda fina
macio
com um colorido de matizes
que tinham mais calor que o próprio Sol
as suas mãos tremiam com impulsos pequeninos
nas minhas
não era preciso dar beijos
nem abrir os olhos
ou soltar uma lágrima
tudo acontecia sem se dar conta
porque a alma estava toda ali
e emprestava à festa
uma elevação tal
que tudo se confundia
de tão perfeito que era

em Agosto ao luar


tinha chovido e era Agosto
pequenas gotículas de chuva
nas folhas largas das parreiras
davam viço
e sabor a lábios de mulher
também a mosto
a passagem era verdejante
com erva por cortar
e a latada em túnel
fazia entre nós e o luar
um tecto tão baixinho
que quase o tocávamos
com a alegria e o saltitar tão naturais
ao fundo a figueira larga sobressaía na clareira
grande estática envolvente
aconchego de bandos de pardais
abrigo de homens e mulheres do campo
lembrava um manto gigante
que depois foi leito chão e flor
e por um tempo teve som
falou gemeu chorou
cantou
e por ser tanto o amor
e tão pouco o tempo
ali ficou
com lágrimas de impossíveis
uma recordação
tão linda
tão fugaz
que durará sempre

segunda-feira, novembro 21, 2005

beleza e ironia

quantos homens te desejam
mulher inexplicavelmente bela
quando passeias roupa apertadinha
no passeio da praia à tardinha

e o que mais me dana
é saber que tu sentes tal desejo
com o jeito de quem emana
um turbilhão de ideias tontas
nos olhares que só de os ver te vejo

que pintura que és de cores tão quentes
tão pitoresca e leve que incendeias
corações fracos às vezes gastos
tal é o calor que tens e que semeias

por seres incrivelmente linda
e teres formas tão pefeitas
chego a pensar que alguém como tu devia
ser para o Estado fonte de receita

por exemplo como um monumento
pagar para te ver e fotografar
ou então seres Presidente
porque não(?)
era ver o povo doido de contente
e incendiar de contentamento a nação

criação divina


se soubesses a ternura que o teu corpo encerra
o desejo o querer e também o amor que inspira
criou-te Deus tenho a certeza
num dia em que tinha a inspiração toda
tal como a cria que ontem vi nascer
vê só de uma mãe búfalo
em plena pradaria e sem parteira
ela pôs-se de pé ali de olhos abertos
e começou a correr
ao pé dos outros todos
a encantá-los a todos com a energia de quem nasce
e ver essa cria é ver-te a ti
força ternura transcendente
que basta estar mexer saltar sorrir
que o nosso coração não pára de bater
querer-te a ti é querer a Deus
sem blasfémia
porque Ele fez-te assim tão bela
para tornar o mundo mais feliz
e a inspiração que teve
ao desenhar-te
o traço firme os tons as cores
a medida certa
só mostra ao mundo que não morreu
e de CRIADOR não perdeu o jeito
uma ova!!!
Ele acaba de criar apenas
ANNA KOURNIKOVA

que vocação(?)

de tudo um pouco tenho feito
sempre tentando acompanhar o movimento
e não ser menos que os outros
ou sentir maior incapacidade no crescer
passeei-me nas memórias dos livros de estudo
nas notas más e menos más
nos jogos de ganhar e de perder
fui ensaiando quase tudo
às vezes levando o meu esforço
aos limites do impossível
tinha tanto jeito em quase tudo
ganhava mais do que perdia
estava sempre em tanto lado
nos sítios onde algo acontecia
mas fazendo bem as contas
ao produto final de tanta dispersão
amigos
que desilusão
foram teclas a mais que eu toquei
castelos no ar que não pousei
e as lutas ficaram por agarrar
passou o Sol surgiu a Lua
dia e noite noite e dia
e hoje sei
que perdi mais do que ganhei

sempre o sonho

sonha-se muito ainda bem
é o que nos dá largueza grande
o amor é lindo a amizade necessária
há emoção a rodos e ilusão
parece que se anda sempre de barriga cheia
num pomar azul de laranjeiras
há frutos coloridos saborosos
que vêm da semente semeada
imaginada
há primaveras e verões de lua cheia
portões a abrir prazer sem fim
o brilho incandescente no olhar
de toda a gente
oxalá não se passasse nunca a fase da quimera
do tudo é possível
da linha sem fim
oxalá o sonho lindo a amizade pura
jorrassem das alturas como estrelas celestes
multicores
e nos cobrissem de um calor suave
de uma alegria eterna
que nos levassem a um êxtase de ternura

autoestrada do sul

olhei para trás
fui ver se via
na estrada um sinal de ti no asfalto

senti silidão na noite fria
lá atrás bem no fundo do medo
nada bulia

e enquanto o coração pulava solto
as lembranças que ocorriam
eram vagas dispersas
como que de mim saíam
retalhos de fobias
sentimentos sem sentido
ilusões de tempos idos

e a noite grande e escura
cobria os fantasmas que apareciam
o sonho tentava matá-los todos
tal era a força que o movia

eras tu jóia de cristal
branca como a luz ao meio dia
que davas forma e sentido
àquela noite fria
ao viajante ali perdido

e ali em plena escuridão
eras tu a única luz que eu via

Publicação em destaque

Livro "Mais poemas que vos deixo"

Breve comentário: Escrevo hoje apenas meia dúzia de palavras para partilhar a notícia com os estimados leitores do blogue, espalhados ...