sábado, dezembro 30, 2006

parece clandestino

Parece clandestino deslocado
o tempero do amor que nos anima
coisa de loucos de famintos
de poetas sonhadores
de bizarros dançarinos
náufragos de um tempo sem valores

quem quer comer come e pronto
diz quem sabe
pede a conta paga vai embora
não tem tempo para dançar
mimar sorrir experimentar
fazer caminho

porquê gastar tempo sem usar
cansar-se transpirar expor-se a julgamentos
se abundam mulheres fáceis homens também
mesmo à mão de semear

se tudo flui ao ritmo esperado
nas ruelas circundantes
come-se e bebe-se compra-se e vende-se
em prazer fácil e oferecido
basta tirar do bolso a nota da carteira

elefante branco bar catedral prazer
século vinte e um
porque não entramos
porque não compramos
porque não nos serve esta “normalidade”
da vida de qualquer cidade
da vida de qualquer um

elefante branco sexo e companhia
aos teus olhos parecemos anormais
só dançamos só sorrimos
depois ficamos num espaço tribo
pé descalço
índio fogo cambaleante
e partimos como chegámos
nem vendemos nem comprámos
nem comemos nem bebemos
nem perdemos o tino nos copos

parece mesmo clandestino
este estranho amor com alma sem cobrar
com ritmos e gestos intrigantes
comportamentos preocupantes

mas há raízes e sons que incendeiam
momentos primitivos céu e terra tão bonitos
fogo e noite lua cheia
mar e ar e seres deslumbramento
que valem mais que vómitos diarreias
orgasmos pagos anedotas de banquete

corpo sem alma é pouco meus senhores
e em vez de troça chacota desconfiança
fica o convite
juntem-se a nós com corpo e alma
dancem sonhem
que a dança e o sonho levar-vos-ão ao paraíso

senti-me Camões Lusíadas canto IX


Abrandava a luz na música que ouvia
no lugar onde estava
os olhos emoção cerrados
faziam noite
e eu crescia no pequeno espaço

esticava os braços e conseguia atravessar o tecto
ou quase
depois descia
flectia as pernas
aguentava um pouco
as mãos pareciam asas
seguravam-me porque eu tremia
quase caía

depois deitava-me
terra chão exausto
em queda quase morria
mas o núcleo vida mexia
eu respondia rastejava rebolava
repelia o medo da vertigem na viragem

senti-me náufrago um tempo
braço Camões clamando salvação
ali num sítio sem ninguém
era um mar noite vendaval
e o movimento que fazia esgotava-me

um corpo salvação que aparecia e que ainda agarrei
descolava da minha mão
eu continuava esbracejava
já quase desistia na solidão de um mar assim
porém enquanto tábua salvação fugia
desolação

atrás de mim
(já em dor e sem esperança)
ninfa deusa mulher apareceu
levou-me dali mostrou-me o céu que merecia
e estive nele até que ela quis

senti-me Camões Lusíadas canto IX
ilha tropical em plena tempestade
depois de Adamastor e Cabo das Tormentas
o colo bom a terra mãe
o descobrimento o prémio o continente

Brasil de Álvares Cabral Índia de Gama

grato por estar aqui neste mar revolto
e por estares aqui também esta noite
por me salvares e por salvares o poema
e ter vivido Portugal um pouco em ti neste lugar

em torno da fogueira


Abanava em torno da fogueira
amparado pelos outros
que me entalavam ondulando
em aperto bom e uterino

eu nu e pequenino encarnado e roxo

era assim que me sentia
em cordão umbilical que me prendia
a um círculo terno e apertado
ao calor do fogo da fogueira
aos corpos bons e quentes que sentia

de olhos semicerrados
a boca escancarada
eu tremia no escuro abraçado e dado

o som exterior ao círculo
que se ouvia
era exótico forte intenso
integrava as origens nos sentidos
sacudia excitava fazia suar
batuque selva serpente
nesta floresta de gente
que em dança movimento lento
subtil ritmado encostava

o meu corpo lá ia
o fogo apertava
o tronco abanava as mãos aqueciam
pousadas na noite macia do corpo mais próximo

a boca fendia entrava em ruptura
a carência existia
uivava gemia escancarada
no som das raízes
no amparo tribal
que bom que seria um seio um falo naquele lugar

perdida no embalo
pedia um amparo
uma seiva sadia
um beijo e um leite um vínculo
um cordão umbilical
que a alimentasse para sempre

deus sol

Pela regulação da vida que fazia
pela energia que trazia
pela luz fonte de vida que é
também porque outros acreditavam
ainda tive uma grande adoração
por esse astro rei
o sol

era mais uma adoração...zinha
confesso
mas se não fosse
e de verdade acreditasse
num sol deus
deus verdadeiro
hoje teria definitivamente
abandonado a minha crença

porque está um dia lindo de morrer
há a luz e o calor de agosto
e é verão
mas o sol não nasce para todos
como sempre ouvi dizer
é só sol e nada mais

porque se nascesse para todos
e fosse deus
teria olhos para ver
teria uma mão estendida a cada vida
neste bairro pobre
neste pedaço de charco sem saída
com meninos tristes
e fome muita fome
também droga

aqui não entra mesmo a tua luz ó sol
é sempre noite
e tu não vês

o sentido das coisas

As coisas todas têm o sentido que têm
apenas esse
nós é que lhe queremos dar outro
que sejam diferentes
melhores
mais ao nosso jeito
que nos agradem se possível cem por cento

como as pessoas
só lhes apontamos os defeitos
ou as virtudes
conforme o desagrado
ou o agrado que sentimos

não somos perfeitos
e exigimos dos outros perfeição

cada um é como é
vale o que vale
nem mais nem menos
não há medida que meça uma tal valia

e viver na ilusão de algo que não existe
a não ser na imaginação
ou numa inteligência curta
é deixar de ver o que se pode ver
e desistir de entender
não uma pessoa
mas o próprio mundo
e toda a gente

é ficar tão limitado de visão
que nos arriscamos a uma total solidão
num mundo abstracto
que existe só
num qualquer dicionário
egoísta e mentecapto da memória

coração inquieto

Se tivesse que apontar
uma devoção imediata
"o caminho a estrada"
seriam a escolha acertada

coração inquieto
procuro sempre outro lugar
além deserto
onde não tenha necessariamente que ficar

na mochila
uma mão cheia de sonhos
partir partir

haver sempre algo a descobrir
algo para ver
não ser eu um lugar parado
um círculo fechado
um papel social atribuído

porque o que estraga mesmo
é ter a cabeça cheia e não poder remar
é madrugar com horizonte
e dar comigo enrolado
encaminhado
enlatado
num ar viciado
numa vida sem sentido
ou apenas com o sentido dos outros

e que me quer convencer
que para lá do convencional
não há mais nada

eu
como não acredito nisso
sofro
mas não desisto de caminhar

suave momento

O prazer que dá
sentir o lugar
e o tempo exacto do lugar
a percepção perfeita
de que se absorve tudo
e não se domina nada

nem para a frente
nem para trás

"aqui e agora"

instante conseguido inconsciente
da recepção do mundo

sente-se o chão
e a semente
nada e tudo ao mesmo tempo
e momentaneamente
o "eu" existe ali

quando se consegue esta proeza
no espírito confundido
perturbado
num mundo agitado

a própria respiração
aconchegada ao coração
sabe tão bem
que apetece ficar ali
eternamente

terça-feira, dezembro 19, 2006

caminho de mudança

Não é desistir
parar
baixar os braços
isso não
que a vida é caminhar
sentir o tempo e o lugar
e o que se tem

de forma a perceber
o que a vertigem não deixa
e desfrutar com intensidade
o que há para desfrutar

se parecer por acaso
que não há nada ali
no sítio que encontrámos
primeiro confirmar
porque não foi por acaso que o achámos

só depois
feitas as contas
entre os prós e os contras
os sim's e os não's
e se nos pratos da balança
o desequilíbrio for grande
e não der para aguentar

coragem companheiro
porque o tempo é tempo de mudança
e só te resta continuar

ou parafraseando o poeta
"emalar a trouxa e zarpar"

rua escura ângulo recto

Tinha visto a publicidade
era ali a porta
rua escura ângulo recto
música ritmada que saía
piso superior encontro breve
em esperança sábado ilusão de felicidade

parei num espaço arrumando o carro
tentei entender-me a mim
o sítio
e o que o sítio queria de mim

havia alguma gente
percebiam-se encontros fortuitos
outros não
na porta de entrada mais iluminada
que a penumbra exterior

auscultei-me por instantes
os olhos fixavam e fugiam
iam ao fundo da rua
depois recolhiam

e no fundo de mim uma onda crescia
do estômago à garganta dor de dúvida
do não saber o que se quer
se espreitar entrar arriscar
um passo uma coragem
no som musical abraço sexo

ou ficar

senti-me ponto de embraiagem na subida
nem para a frente nem para trás
paralisado

os olhos eram mais vistos do que viam
a dúvida o medo punham-me pequenino e magro
em carro de alta cilindrada
imobilizado

só reparei com o reflexo da mão
chave rodando a ignição
que era o regresso
a resposta encontrada para aquela situação
evitar o muro a ponte o lado de lá

afinal sempre havia um jogo de bola na tv
e a mão sabia disso
do meu medo e do jogo de bola da tv
quando num ápice rodou a chave da ignição
e me pôs a salvo no sofá
entretido e sem esforço

sábado, dezembro 16, 2006

casório principesco

Não sei que contas fez tia Ermelinda
que conheci sempre rotinha
e sem cheta
pedindo favores de porta em porta
ou fazendo umas limpezas
por especial favor do presidente
nas retretes públicas e anexos da câmara

um dia destes
veja-se a vistaça
sem qualquer contenção
e todo o destempero
tia Ermelinda convidou trezentos figurantes
para o casamento do filho
um engenheiro com um curso universitário
de não sei que universidade
mas que tem a ver com cavalos

casou o senhor engenheiro
com pompa e circunstância
a vila e a igreja engalanadas
automóveis camionetas
a perder de vista
nem faltaram para ajudar à festa
artistas de grande nomeada

e apesar da figurinha patética do engenheiro
do bizarro extremo que a situação encerra
não deixou de incomodar a "inteligentia" da terra
que com muito mais miolo e pergaminhos
não conseguem a proeza menor
de levar a filha ao casório pelo civil

pois pasme-se só

filhinhas educadas muito queridas e prendadas
se sentem melhor à experiência
e de preferência
em apartamento alugado
com o dinheirinho dos pais

tia Preciosa

Queixosa estava sempre tia Preciosa
mal se endireitava
o frio do nordeste em terras de Aquilino
acabava-lhe com os ossos e com o resto

foi assim que a deixei vai para um ano
a mulher dos queijos
como era conhecida

ela era a parte trágica da vida
solidão doença
limitação de se valer
e afirmei preocupado no regresso
que tia Preciosa não aguentaria outro inverno

não foi assim
volvido um ano em nova romaria àquelas bandas
e para espanto meu
tia Preciosa ressuscitara
os filhos acertaram no remédio
lar de dia
e televisão
(logo três uma em cada divisão)

e a vida dela
triste e amargurada
virou em correria
no lugar da serrania

de manhã vão buscá-la de carrinha
dá à língua
e lá para a tardinha
deixam-na de novo na casinha

e trote trote
num tal virote
vai de televisão em televisão
espreitar as telenovelas que pode

eis que o milagre aconteceu

histórias tristes
de lobos ovelhas e defuntos
missas e invernias
de índole local
cederam lugar
a histórias modernaças
de risos tonterias e enredos tais

que bem pode dizer-se
que tia Preciosa se inseriu
definitivamente
no contexto da aldeia global

sexta-feira, dezembro 15, 2006

juventude perdida

Era jovem quando eu a conheci
pretendida por cem talvez por mil
todos tentavam a sua sorte no olhar meigo que oferecia
nos atributos escondidos que só a boa educação que tinha
não deixava ver

a Tilinha não podia dar mais do que oferecia
eram tempos de clausura e o que fazia às escondidas
um beijo furtivo
um apertãozinho
um ceder pouco com medo de ceder
fizeram dela uma boneca inútil
sem sexo nem afecto
desempenhando um papel de contenção
depois esposa fiel
rendida a um casamento que acabou com ela

com tanta contenção numa juventude tão bela
tão burguesmente apetecida
num olhar que prometia tanto
e não dava nada
não me admirou
quando um amigo há dias me contou
que ela

essa menina prendada
filha de família
agora na casa dos cinquenta
se entregara
farta de fingir e sobretudo revoltada
a um jardineiro ucraniano
contratado pelo marido
(industrial português bem sucedido)

ondas más

Nada se passou
o telefone não tocou
a vida está igual
aqui dentro e lá fora
nem o barulho aumentou
nem a luz
nem as características do lugar

e que ondas aconteceram em tão pouco tempo
que tudo se alterou
especialmente a perspectiva de ver
e de sentir
e de ter lógica

deve ser qualquer coisa de imperceptível
forte
que nos atravessa o ânimo
e vira tudo do avesso

o amigo passa a inimigo
o racional deixa de existir
(como os automobilistas nas ruas
da cidade
que se insultam
e se agridem
por quase nada)

mas é pior que isso
porque tudo seca quando é assim
não há afecto nem ponta de razão
que salve a situação
e nada cai do céu
como uma varinha mágica

vemo-nos sós
e sem nenhuma solução

creio que em tais situações
o melhor é mesmo esperar
e ter fé que a onda passe

horinha predilecta

Se eu pudesse
e tu deixasses
fazia de ti a minha horinha predilecta
a minha confidente
o meu lugar secreto
o meu presente permanente

onde tu estivesses
o que eu te desse
e o que tu me desses
haveria de ser tanto
e o tempo ser tão pouco
que a vida entraria em défice de tempo

seria tão rápida a vertigem
o enlace tão total
que antes de todo o bem real
e o mal real
(coisas que a vida quando dura tem)
chegassem

a corrida já teria chegado ao fim
sem nos darmos conta disso

tornarmo-nos pessoas

Eram palavras demais para sairem
as ideias com a fartura engasgavam
o suor e as lágrimas corriam
pela face do homem que não se fazia ouvir

ninguém dava conta disso
nem tinha importância
o tempo era mais de falas corriqueiras
de sorrisos ocos
de fato e de gravata
tudo para fazer de conta e compor a imagem
porque só importava o que fosse mediático

quem perdesse tempo com ele nunca iria longe
nem ganharia glória ou uma brilhante carreira
muito menos honrarias de primeira página

como aquele homem sofria
porque entre o que sentia e o que via
era o abismo
entre o que queria para os outros
e o que podia dar
um impossível de alcançar

como não se achava com jeito para por gravata
como lhe faltava berço para o consolar
como o mundo era pequeno demais e não cabia nele
como ninguém o ouvia
acabou por se suicidar

desse homem apenas ficou um livro
não se lhe conhecia família

cão faminto

Neste horizonte morno
quase sinto o aroma dos teus seios
e o cheiro todo do desejo
que o teu corpo inspira

cubro de música o ar que me separa de ti
e vou no vento
que perturba o equilíbrio do carro
e o meu

não descubro nada
nem consigo pensar em nada

tinha até previsto
aproveitar a solidão de um dia destes
para falar com deus
mas não consigo
é forte de mais a obcessão

e a mente deforma a maneira de ver
quando se está sensível
e eu estou sensível
(sensível e obcecado)

apenas tenho a consciência exacta
de que a minha vida se tornou
numa fuga dela
quando vou no vento e fujo para ti

se ao menos estivesses lá quando chegasse
ou te encontrasse
se ao menos saciasse uma vez que fosse a minha fome
talvez algo mudasse
talvez sentisse
que se pode petiscar neste pomar
e então seria grato

mas não

o caminho que levo é o caminho que trago
qual cão faminto sem osso para roer
sem carne para comer
sem rosa para cheirar

sou tempo que já não se encontra neste tempo

ou viro a página definitivamente
ou desacerto de vez

história de amor inédita

Gostava de te dar beijinhos
de trocar amor com amor
com mil carinhos
ficar tonto sem preconceitos
enredar-me contigo
numa história inédita

que fosse tema de cinema
que inspirasse tese de doutores
que saltasse fronteiras
que levasse ao rubro
o anémico e o casto

uma história que se escrevesse
com empolgantes golpes de magia
que desafiasse tudo em ousadia
o ocaso inevitável do sol
o cair da noite
o nascer do dia

e trocasse as voltas a tudo
ao tédio
ao ódio
à maneira como se vêem as coisas
ao colorido que não tem necessariamente de ter cor

uma história invulgar
não importava o tempo
mas que só acabasse
se um de nós quisesse
ou se a guerra
ou uma qualquer morte
a matasse

beleza e movimento

Faz-te mal a ti
a quem gosta de ti
a quem te entende
ficares assim a fazer de conta
que és o que não és

por fora
basta olhar
seja quem for
deixar tombar o olhar muito simplesmente
sobre ti
e logo vê que és verdadeiramente linda

devias ser tenista
bailarina
corredora
qualquer coisa que te pusesse em movimento

quem tivesse de te amar
amar-te-ia assim
o corpo a vida o sonho
uma escultura livre como um voo de ave
solta e linda
iria atrás de ti como quem nasce todos os dias
e viveria eternamente num conto de fadas

recanto de memória

Pousei num sítio novo
tão novo que nunca o tinha visto
(assim como nos sonhos)
havia gente
bastante gente mesmo tendo em conta a dimensão do lugar

era verão e estava um sol que fervia
o pó seco levantava com o alvoroço
e com o vento
que dava ao lugarejo
(ainda hoje dá)
um panorama
desolado
de extrema solidão

havia uma ponte nova
com festa de inauguração
essa a razão por eu estar ali e os outros

mal via a ponte porque era pequenino
e também não era importante vê-la
agarrava-me o tempo de uma margem
que não entendia
alguns adultos pisavam-me
com uma dor que doía
e que ficaria para sempre

só mais tarde compreendi o importante que foi aquela ponte
quando na outra margem vi
com olhos de ver
pela primeira vez aparecer
o meu pai
céus que de tanto olhar quase fiquei sem ver
as nuvens de pó cobriam toda a gente
não sabia se estava vivo se morri

não amei tudo porque não sabia amar
não me dei todo porque tinha medo de me dar
não gritei de felicidade
porque tinha medo de gritar

mas compreendi
naquele fim do mundo
em Barca d'Alva
numa inauguração de uma qualquer ponte
que mal sabia para que servia
que o meu pai
era a pessoa mais importante que havia

domingo, dezembro 10, 2006

um anjo

A vida passa
o dia a dia mói a paciência
o virtual é a ausência presente decretada
a dor o medo a solidão existem mesmo

mas de repente
como intervalo em pesadelo
um rostinho frágil e aberto
lindo
fica ali à minha frente

entra por mim a dentro
e eu por ele
espalham-se ondas de rubor na face
minha dela
há risos
invade-me um olhar com brilho de anjo
aparecido para me ver feliz

o gesto e a palavra se confundem
os olhos são destino obrigatório
tenho a porta aberta ao mundo dos anjos

tanto que se quer dar quando assim é
apetece tocar mas sem magoar
apetece beber mas sem esgotar
apetece guardar
apetece partilhar e não se sabe o quê

fica-se ridículo mas fica-se bem
vou guardar este intervalo

três mulheres eu queria

Três é a conta que deus fez
o número de mulheres que eu queria
mas para não incorrer em blasfêmea
direi apenas
que queria uma
onde coubessem três

uma seria anjo
a guarda o guia
a luz alva da aurora
a mais doce ternura
a aparição e o sonho
toda a inspiração contida nela

outra seria santa
a adoração tamanha
o modelo exacto
fiel e doce
o rumo certo
um coração perfeito

a terceira só mulher
o encarnado dos sentidos
os desejos incontidos
o abraço e o corpo
o prazer e a dor
lábios e gemidos
amor amor amor

o passeio dos tristes

Não tenho hoje miragens que enlouqueçam
ou sequer que me sustenham
nem encontro nas gotículas de chuva
uma paz parecida com a dos anjos
ou outra paz qualquer

e a luz de Dezembro é tão pouca
que as cores ficam tristes por fora e por dentro
quase perco o fio á meada
no translúcido recanto
do meu apartamento piso sete

no cinzento escuro do bairro
a esquina forma com os prédios novos
e os outros
também com as árvores grandes
e as outras
contornos tão oblíquos
que transmitem uma textura inerte
difusa

o longe
não é mais o farol para lá do nevoeiro
a estrela polar de quem se encontrava na distância

e o perto
textura inerte e difusa
mais me confunde
quando reuno as forças todas
só para sair de casa e voltar
"o passeio dos tristes"

um povo brando

Pouca gente
um povo brando
com um mar imenso
e uma relação profunda
entre o longe e o perto

marcado pela distância
dos centros do mundo
matuta muito
amor e raiva se confundem
ou "vida abençoada"
ou "puta de vida"

como que deus seja português
e o deixe de ser às vezes

um povo que se mistura facilmente
um povo amigo
mas sem trunfos para jogar
e afirmar a alma grande que tem
no xadrez da economia

e sempre sempre acontece
a enxada e o sonho
o partir e o chegar
o pegar e o largar
o ter que ser

o Manel que rebenta se não parte
por a terra ser pequena
e já não caber mais nela

e a terra foi sempre pequena
para alma e braços tão grandes

e porque o sonho não cabe
na linha do horizonte
não pode haver Portugal sem lágrimas
ou sem poetas

tempo omnipotente

O tempo sempre o tempo
numa pequena lembrança
num qualquer susto
no gosto e no desgosto
no adeus obrigatório

o menino nasce cresce arrefece
os rios e as plantas vão com ele
também os combóios
a escola
o amor
o justo e o injusto
o lugarzinho pequeno e bom
que se apaga com a memória dele

e sempre este senhor omnipotente
omnipresente
a armadilha mais bem montada
o terrível paradoxo
a incapacidade maior do homem

porque tempo é vida
não se pode parar o tempo
(mesmo que se pudesse)

porque tempo é morte
não se pode parar o tempo
(mesmo que se pudesse)

nada

Saltita o pensamento sem se fixar em nada
fica oblíquo entre hesitações
ideias que devia haver e que não há
os sonhos que morrem sem nascer
as janelas fechadas
ou pior
a ausência delas

inspiro um pouco de ar
depois passo o olhar
entre prédios uniformes
da cidade
no desespero de encontrar um sinal
uma ideia pequenina e fértil

NADA

entro para dentro
afastando-me da varanda
ponho a torneira a correr
lavo as mãos e o rosto
acalmo o vazio que sinto
olhando um retrato de família
mas não acrescento nada

mergulho na memória

Fecho profundamente os olhos
mergulho na memória
há retalhos de mim por tantos lados
parecem vidas distintas
pequenos excertos
aqui ali acolá
com pétalas e cardos
consoante deus estava mais ou menos lá

por aí disperso
apenas o núcleo de referências
me tem mantido uno
e fiel a um núcleo principal

o tempo será quem faz o resto
não fico em lado nenhum porque ninguém fica
irei não sei para onde porque ninguém sabe
mas sei que tenho que ir para qualquer lado

que será da memória toda
que é luz e vida e som
e gente muita gente
quando não existir o ser que a ela se ligou(?)

o rio começa o rio termina

Há um limite para tudo
para a presa que foge e chega o tempo em que desiste
para o que sobrevive até que se cansa
para a dor que se aguenta até ser mais forte que a resistência
para o vento que não sopra sempre
para a ave que não mantém voo permanente
para o fim inevitável da linha do horizonte
para o tempo que não chega para ultrapassar o limite

não fora a ficção o sonho a imaginação
e o realismo absoluto seria o caminho certo

vida é vida e morte é morte
o que se vê é o que é
não mais do que isso
o rio começa
o rio termina
andamos sempre perto
do princípio e do fim

não fora a ficção o sonho a imaginação
tal como o rio
princípio e fim
não haveria além dos limites

sexta-feira, dezembro 08, 2006

entre a terra e o céu

Acordo por vezes
(mais quando regresso de lugares)
com uma ânsia desmedida de lonjura
de sair partir procurar
talvez onde não exista sequer
lugar

sentir o prazer de caminhar
subir ao cimo
com vento forte soprando nas narinas
mostrando-me outra encosta
outro cimo
aí onde só chega
quem não desfalece na subida

que regalo

monto a vela na mochila
e sou o pássaro que sempre quis voar
sou o barco que procura porto
sou o peregrino consolado
sou o emissário de lugares parados

sinto um prazer que não vem no dicionário
e acreditem
nada me falta
nem ninguém

No intervalo entre a terra e o céu
tenho todos comigo
porque estou com a alma toda aberta

anjo mulher e firmamento

Sou o intervalo das tuas paixões
ou talvez menos
uma aguarela suave esbatida
perdida nas cores quentes
de arco-íris e fogo
do teu coração

sonhei um dia
perdido nas palavras
enredado em hesitações
ver-te e sentir-te com a força do relâmpago
em volúpia que só tanto amor dá e tanta sede

quis lutar contra o tempo
esquecer a distância
fazer com que o dia nascesse sempre
entrar por ti a dentro como quem entra
num mundo perdido e encontrado
num templo vazio e simultaneamente cheio

mas para ti sou o intervalo
sou

nas palavras intensamente ditas
nos actos receosos
de que só fica uma memória frouxa
de um tempo gasto sem proveito

ou talvez não

porque ainda acredito na palavra
no infinito imaginar
no sonho que é meu
na distância imensa que sou capaz de encurtar

para te ver como quero
não longe mas perto

anjo mulher e firmamento
aí onde estás
no meu sonho
começa tudo e nada acaba

faço contigo o que me dá na gana

na cabana ao pé do mar

Na cabana ao pé do mar
no intervalo entre o sol e o luar
ondas lançadas nas arribas
fragas massacradas pelo tempo
sinto passar por mim sem perceber
sonhos de romances nos rochedos
caminhadas eternas pelos areais
loucuras de outras dimensões
que só a imaginação recria
ali naquele lugar

no aconchego das paredes frágeis
entre a dimensão do céu e do mar

se alguém me visse
se alguem aparecesse
alguém que entrasse em mim profundamente
e conseguisse beber o meu ser absoluto
se alguém conseguisse
na conjugação perfeita dos elementos
aparecer assim

ficaria ali eternamente
brincaria com as estrelas
saltaria nas ondas
desafiaria o espaço

e os areais seriam
extensos mantos de ternura
entre o mar e o céu

só amigo

Ando contigo entre a palavra amigo
e a palavra amante
desespero
porque não encontro na distância
entre os dois termos
a fórmula ideal para o que quero
(a atracção afinal também separa)

e não há gestos nem palavras
não há ilusões que cheguem
nem encontro soluções
amigo é pouco
quero mais

mas mais é muito
no vocabulário que tens
é quase tudo
é sentires que dás o que não tens
e ainda mais

eu fico sem jeito
no encontro e desencontro das palavras
perco o sentido da medida certa
fico com saudade e pena ao mesmo tempo
de mim de ti
de um tempo por cumprir
de um tempo por amar

desaparece o momento certo
fica apenas uma nebelina a pairar
entre mim e ti
que me faz enlouquecer

quinta-feira, dezembro 07, 2006

rapaz de lisboa


Ver-te triste assim
rapaz de lisboa
pousado no chão de um qualquer lugar
á chuva ao vento ao frio
pedaço de nada
infeliz cabisbaixo vazio
só com feridas por sarar

que vida

o que fez teus passos caminharem
num tal caminho de vida estragada(?)

passo por ti
mão estendida
conversa começada logo finda
olhos que decerto nasceram lindos de criança
que sentiram ainda o sol da brincadeira
o som da vida
talvez até um beijo
e o sonho de quem nasce para brincar e para amar

sofro de te ver
e por saber também
que ninguém vai te ajudar
limito-me a passar todos os dias
por ti
como os outros fazem afinal
e a deixar nos teus olhos fundos
suplicantes
a moeda (pão da vida) que esses olhos sentem
como último engodo e alívio no tempo que te resta

fico solidário e impotente
e quando me afasto
só me tranquiliza (pouco)
o milagre necessário que tu representas
e no afastar dos meus passos
num silêncio incomodado grito

"não esmoreças
talvez rapaz esse milagre aconteça"

se fosse possível

Se fosse possível
se andasses de ténis e t'shirt todo o ano
se em ti o tempo não fizesse rugas
e o sítio onde te vi nunca mudasse
se a marca dos teus pés na praia lá ficasse
se o verão fosse quimera e água benta
e tu sempre ternura

se a vida fosse assim
envolta em pétalas de ti
lágrimas lindas
que em teus olhos incendeiam
lábios e risos
de ninfa e de anjo

que só de os ver e ouvir
assim de leve
parece que levanto voo
e não me falta nada

que urgente fazer-se um céu assim
onde a alma acompanhe o gesto
e a utopia de ti
imagem moldura anjo
cubra de azul e também de eterno
o sentimento
a flor silvestre
o coração do mundo

sobre a morte

Perguntavas-me ontem
só porque leste uns versos meus
se eu escrevia sobre a morte
se eu pensava nisso
se eu sabia alguma coisa

e vi no teu olhar
(lisonja que senti)
um ar
de quem esperava encontrar
neste arrumador de palavras
neste escrivão de versos
a resposta correcta
a explicação certa

estava cansado demais
para falar da morte
confesso
mas porque sou alguém
que vai no mesmo rio
e as minhas águas são as tuas águas
e te vi preocupada

acabei por te dizer
não penso muito nisso
(era mentira)

é algo que faz parte
da caminhada
como as águas de um rio
que desatinam
com o medo da chegada
eram doces
ficam salgadas

é um novo ciclo que começa
é um mundo novo e grande
o mar
que as espera

mas a mudança
mudança radical
perturba
e é sempre um choque
há sempre um grito

o que é natural

porque depois
vencido o desacerto
o medo
até pode ser melhor
tanta largueza de espaço e de tempo

música sempre

A música tem vida vibração
desperta faz sonhar
leva cada um a descobrir que cantar faz bem
dançar também

o movimento o sentimento
a sensação boa que dão
o jeito que se ganha mexendo o corpo
aliviando a alma soltando amarras

poucas coisas farão melhor ao coração

e não há idade
para gostar de um qualquer som
existe só a escolha a ocasião

porque o que conta mesmo
é o enlevo que se sente
ouvindo em silêncio a melodia
ou sentir barulho a saltitar
ou pura e simplesmente acompanhar
com a nossa voz
o nosso jeito
o ritmo da batida
a letra sabida ou mal sabida
sorrir chorar

importa desinibir soltar
ao mesmo tempo que se dança
ou que se canta

e canto tem que ver com passarinho
dança movimento solto
fazem lembrar uma criança

domingo, dezembro 03, 2006

em ti o sol do oriente

Segurava o teu corpo esbelto e longo pela cintura
linda e vinda do oriente
como o sol
que já em pequenino me ensinavam vir da tua terra
desse oriente longínquo que nem imaginava saber onde ficava

também sabia
que vinha para iluminar tudo
para dar luz
para aquecer

eu aprendia essas coisas que diziam
achava então que o oriente só por isso
devia ser bom e feliz
por ter o sol primeiro que os outros
depois não ficava com ele
deixava-o ir para levar calor ao mundo inteiro

foi isto que pensei
quando hoje senti o sol oriente do teu corpo
sob o céu do meu país

só por pensar isso gostaria de ti

uma flor do oriente aqui na minha terra
ocidente extremo da europa
a melhor prenda hoje para os ensinamentos de menino
alma gentil sorriso de anjo um gesto terno
raio de luz em meus olhos tristes
não por te verem mas por se sentirem pouco ante os teus

quem dera que tivesses acompanhado o sol
quando eu era menino
quando o via nascer pelas manhãs
e só tinha olhos para ele
quando da minha janela o via aparecer
gigante
quase encarnado
uma bola enorme por detrás do monte
que emoldurava um dos lados da minha casa

mas já nessa altura eu pensava muito e não entendia nada

sabia que o sol vinha de longe
que era grande
que subia no céu durante o dia
e depois desaparecia
afinal como todas as coisas que aparecem

mas eu ficava e fico triste por isso
porque gostava e gosto
de muitas coisas que aparecem
e depois desaparecem
como o sol

e não entendia nem entendo porque tem que ser assim

protesto revolta

Que posso fazer pelos outros
sem primeiro fazer por mim
que posso dar sem semear

o fruto vem depois de plantar
cuidar
depois de andar dedicar muito amor
a tudo

colher antes como pode ser

antes de madrugar lavrar sentir tocar
arriscar
ninguém vai a lado nenhum

eu posso protestar fica o protesto
eu posso-me revoltar fica a revolta
eu posso até ter razão
no sentimento e nos actos
na atitude que tomo solidária
de ir para onde os outros vão
de estar com eles no entendimento social

mas no fim das bandeiras no ar
do desfilar voraz
compacto
ombro a ombro braço a braço
grito a grito
que ficará no silêncio estéril do meu quarto
sem ver sequência no tempo dado
sem ver sementeira e só queixume
e sentir que logo mais logo um dia vai nascer
e eu na mesma

queixoso cansado adiado
sem enxada nem arado nem coisa nenhuma

e a multidão que faz a multidão
a esta hora em que me devora a noite(?)

sinto-me tão atrapalhado

Se eu lhe dissesse baixinho
naquele ouvido branquinho
arrepiado em sussurro
tão agradado em sorriso
o que lhe queria dizer

mas por onde começar
sinto-me tão atrapalhado
talvez para impressionar
uma história de pasmar

eu perdido num campo
território francês
anarquistas cabeludos
políticos fartos discursos
eu na tenda ensaiando
um caminho sem futuro

ou a outra em que estava
bandeiras berrantes cores
alaridos ruas apitos
intensa berraria gente
carros tanques e gritos
para derrubar o presidente

ou a aventura em África
calor tórrido eu no mato
guerra aberta eu corria
tiros mortos muitos feridos
em um silêncio de morte
uma emboscada na vida

e neste desfiar de rosário
de que modo impressionar
dei-me conta a transpirar
cansado de tanto pensar
que a carinha afastava
levando o ouvido e o sorriso
incapaz de aguentar
o meu silêncio deprimido

e era tão simples o que lhe queria dizer

liberdade a quanto obrigas

Liberdade nunca é demais
há quem diga
mas se a liberdade é demais
cada um para sua banda
acaba tudo aos ais
sozinho e sem comando

sou tão linda danço bem
eu sou toda exigente
não me dou a qualquer um
eu cá sou toda peixeira
ninguém ouve mas eu falo
pois a mim ninguém me cala
eu encosto ali ao canto
durmo e descanso deitado
e assim faço o que posso
a mais não sou obrigado

tal qual manta de retalhos
uma liberdade sem leme
cada retalho faz falta
a manta precisa deles
mas depois tão separados
tem que haver quem os ajunte
coitados

neste propósito lembrei
que certas modalidades
em desporto conjugam
e bem
figuras livres e também
figuras obrigatórias

que liberdade demais
leva a grande solidão
como levava o degredo
em regimes de opressão

e olho aqui para nós
viveiro de tantas cores
sonhos e tantos calores
retalhos de tanto lado
só com ampla liberdade
sem nada de obrigatório

um dia destes cansados
de coração destroçado
livres exangues num canto
acabamos entregados em gang
ou seita quem sabe

e como um bem abraçamos
rezar em êxtase em vómito
ou o alheio roubar
e mobilizados lutamos
contra a liberdade que fomos
sem nada por que lutar
e em que nos sentimos tão sós

mudar o lado do disco

Custa tanto a perceber
nesta vida que levamos
tantos conceitos cansados
tantos hábitos repetidos
má tradição feita vício
que tardamos a aprender
mudar o lado do disco

tardamos em perceber
que do outro lado existe
uma atitude fantástica
um renascer com mudança
que pode muito bem ser
a terapia acertada

uma questão de atitude
de um lado o disco riscado
que chatice mais um dia
problema e mais problema
tanto esforço em vale de lágrimas

do outro feito arco íris
toque de deusa e de fada
cada dia é uma dádiva
cada dia tem cá tudo

o sabor amargo expira
o sol nasce e nos inspira
vida vida e mais vida

a música toca e anima
o rio lama já cansa
optimismo contagia
vira o disco e caminha
rio de amor abundância
vira lado positivo
descobre a criação perfeita

Publicação em destaque

Livro "Mais poemas que vos deixo"

Breve comentário: Escrevo hoje apenas meia dúzia de palavras para partilhar a notícia com os estimados leitores do blogue, espalhados ...