segunda-feira, dezembro 29, 2008

Família séc. XXI


Ferve o almoço em nervoso miudinho
o telemóvel toca
feriado dia santo fim de semana prolongado
o tempo estica
quase pára
na família exausta
pouco habituada a dar-se tanto

o lugar é chato curto estreito
a habitação quase não respira
rodeada de betão sombrio e alto
em toda a volta

surgem ideias cansam-se cabeças
corrupio de corpos e de vozes
na casa pequena da cidade
tanta gente num baralho complexo
de micro famílias recompostas
unidas pela neura de um tempo imenso
que desnuda as pessoas
e as põe expostas

o jogo continua com a idade
com as novas formas de jogar
e não se consegue descortinar
nestas ondas poderosas
que às vezes se agigantam
ameaçam gritam ferem
se atropelam...

onde vive o amor!

e navegar em mares perigosos
fundos
com fantasmas do tamanho do Adamastor
sem perder o rumo
uma ponta de liberdade que dê para respirar
num espaço humano
em curto circuito…

o próprio amor pode naufragar!

domingo, dezembro 28, 2008

enfado na fartura de natal


Reparo no enfado na ausência
de consciência
que se experimenta
na fartura da presença

é no mínimo caricato tal enfado!

centenas de canais de televisão
outras tantas estações
na telefonia
milhares milhões de “sites” na internet
coisas sérias diversões
jogos reais
jogos virtuais
brinquedos de brincar
brinquedos de cifrões

e a noite de natal tão oca
tão sem nada que dizer
sem alegria alegre
para viver!

se percebesse a razão
de tanto tédio
em seara grada
recheada árvore de natal
tecnologias avançadas de pasmar
e não quisesse tirar ao progresso
(porque não quero)
o seu curso natural…

teria de o explicar na tradição
e no desfasamento que há
quando se dá a mesma solução
ao que havia há dois mil anos
e já não há!

como encontrar paz menino Jesus
manjedoura bafo quente
vaquinhas e burrinhos
um sorriso divinal iluminado
de deserto pregação
num tempo hoje
em que só se vive
se sobrevive
em confusão?

em aldeia global mediatizada
industrializada
iluminada
de luz artificial
em que já não se vê
o que dantes por ter estrelas a brilhar
se via…

e que era suposto ser o céu?

sábado, dezembro 27, 2008

um dia de natal


Corpo dorido mal dormido
remeloso entupido
acordo
entre a angústia e a gripe

o frio incomoda
o aquecedor irrita
o espírito de natal sufoca

peço ajuda na farmácia
para me suportar

tento animar
mas não é fácil
com os olhos a chorar
uma vontade enorme de tossir
e de espirrar

há pessoas à porta
outras a chegar

o natal não se pode adiar!

um que vomita
outro que tosse
outro que grita
a festa aquece

a comer a beber a falar
a garganta a entupir
a febre sempre a aumentar

há família
há presentes
há luzinhas a brilhar
há conversa a entreter
aspirinas a ajudar

mesmo com gripe
natal é para celebrar!

sábado, dezembro 20, 2008

voz interior


O retorno em eco
da voz fraca
que sai
é a dificuldade interior
de enfrentar
o que se apresenta
para ultrapassar

o ânimo inicial anima
ou desanima
no tamanho da dificuldade

proximidade sensação
brilho no peito
quase paixão
afastamento depois
sem saber porquê

cansaço exangue
em vez de embriaguez

o corpo curvo
os olhos murchos
meia volta em retirada
triste e circunspecto
mais uma vez

uma voz que me vê assim
que entende a situação
olha para mim
e diz:

“ela está tão feliz
esbracejando rindo
atenções mil de toda a gente
que em tanto espaço
de felicidade intensa
exterior
fica desfocado
tamanho sentimento
da tua alma imensa
e interior”

eu ouvi a voz e entendi!

sexta-feira, dezembro 19, 2008

como viver sem ver?


Como viver sem ver?
tábua rasa tela branca sem cinema
virgem de assunto de cor e movimento
como se nada houvesse
nem nada se passasse?

seria bom que se pudesse!

mas são muitos filmes
inúmeras as peripécias
os tombos os rombos
a raiva o ódio o amor
todo um encaminhar de juízos num sentido
soma de imperceptíveis triliões
mais triliões
de consequências…

crescemos em montagem intelectual
entendimento complexo
olhos para ver
juízos para julgar

tantos os autores
mestres professores
tanto o conhecimento percebido!

para quê?

de pouco vale tamanho conhecimento
quando o viço foge
chegam as rugas e tudo se mistura
cresce aumenta a neblina
na força que já era

e um nevoeiro espesso a vida fica!

antes ficasse assim na realidade
que nada se visse e se mostrasse…

porque quando a bruma se esvanece
e a luz clareia
vem ao de cima
a complexa dispendiosa construção
que somos
em inevitável perda de ventura
animação

é a luz do dia que o mostra
a luz dos olhos que o vê
em reflexo espelho realidade
a tresandar por todo o lado

mal assoma um pouco de alegria
ainda
logo esta em estranheza entristece
desaparece
finda!

domingo, dezembro 14, 2008

equilíbrio pelo medo


Quando fica negra a situação
quando se perde consolo no equilíbrio
da razão
há que isolar os exageros
entendê-los
e agir perdendo o medo

contam os olhos dos outros
as normas que eles têm para nós
os seus conselhos
contam as mãos estendidas
no tempo certo

mas atenção
nada paga a liberdade
ter voz para expressar os sentimentos

porque meu amigo
ser só certinho
não partir um prato
não causar qualquer problema
ser só discreto bem comportadinho
pode causar grande embaraço
e ser tanto “equilíbrio” uma ameaça

há bem e há mal decerto
normas gerais para cumprir
mas quando se trata de equilíbrio
há que o distinguir
da sobrevivência
a qualquer preço

se for esse o caso
chegará a altura
em que haverá que perder
tanta decência
compostura
e soltar o grito próprio!

trance dance


Deixo o lá fora a exigência a aparência
a avenida congestionada
montras apinhadas de produtos
motoristas discutindo no semáforo
encosto o carro numa zona mais pacata

visto roupa nova cubro-me apenas
quanto baste
passo a porta da ilha encantada

ali há corpos paz poucas palavras
gestos suaves
só depois um batuque entoa
no espaço

com o som meu corpo treme
as pernas flectem
os braços mexem
tento acertar desacertando

que lugar este? Que viagem esta?
vou movendo vou dançando
entro no mundo subtil do sentimento

vejo índio cavalgando às vezes
vejo cow boy na pradaria
vejo luz de uma fogueira
um círculo de gente em euforia
corpos semi-nus em volta dela
vejo rituais estranhos quentes
no calor encarnado chão
em noite a céu aberto

são visões a que transportam
os sons ritmados em fundo acústico
harmonia interior de transe alegria
de quando não havia stress
vidas complexas brilharetes
galas ou galões
assalariados ou patrões

vivia-se e morria-se
num qualquer acto natural
a caçar a lutar a dançar a beber
a amar a celebrar!

estive um tempo ali e foi sonho o que vivi

quando saí
e retomei a viagem de regresso
o betão as luzes a cidade complexa
a engenharia das pontes e dos túneis
a fartura de tudo…

senti a urgência que é
na solidão diária do sofá
do plasma da internet dos avanços técnicos
cibernéticos
cuidar da pessoa já
antes que seja tarde
e morra o que de melhor nela há!

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Portugal mais limpo


De nariz pousado
no vidro embaciado
pelo bafo matinal
reparo no estendal de roupa
na varanda ao lado

olhando o estendal
faz-me sorrir o acto de pensar
nas famílias arcaicas
no bolor tradicional

far-lhes-ia bem estagiar
no lugar da roupa
uma lavagem primeiro
depois uma exposição solar

algumas em que estou a pensar
seria bom recorrer
a lavagem manual
serem torcidas espremidas
em tanque bem batidas
só depois esticadas penduradas

com tanta porcaria
alguma brancura resultaria
do processo!

tudo a lavar a corar
durante um tempo

não falta em Portugal
vento e sol
para enxugar
nem água para lavar

faltam mais é lavadeiras
e vontade de mudar!

eminência do fim


O que não é cuidado
tratado
fica murcho
abandonado


de dia ainda vá
coitado
persiste insiste
em manter-se de pé
firme forte erecto
num destino abjecto

há luz ruído
mesmo distante e perdido
em ínfimos decibéis
são sopro leve e breve
a animar o coração

mas de noite…
arrepio frio de geada
clausura breu
ilusão perdida vertida nada?!

a seiva a secar
segundo a segundo
o corpo a mirrar
na iminência do fim

o eu a fugir
o tu que fugiu
o nós arredado dali

não sei de onde vim
para aqui
não sei para onde vou
daqui

sei que vim só
que vou só
e que o que se passa aqui
é intervalo
entre uma ignorância
e outra ignorância!

domingo, dezembro 07, 2008

Europa Portugal como tu és


Caía uma chuva miudinha
que molhava
as folhas no chão tombadas
coloriam as poças de água
no carreiro estreito que pisava

enquanto caminhava
e me molhava
olhando o dia carregado
escuro de invernia
pensava
no país que somos distraído

já um sapato na biqueira
se encharcava
e as calças que levava
repassavam a água que caía

neste desconforto que sentia
o “homem eu” mal vestido
para o tempo que fazia
sorria…

tantos anos projectados
para zonas tropicais
os longes das quenturas africanas
ou dos Brasis os tórridos areais
que nos esquecemos
da fria Europa em que vivemos

hoje eu aqui deles descendente
filho de emigrantes
navegantes sonhadores
(outras paragens
outros calores)
senti…
que tenho que acordar de vez
mudar o assento

e sem deixar o sonho
herdado de antes

ir a um centro comercial talvez
comprar roupas agasalhos
para viver-te
Europa Portugal como tu és!

sexta-feira, dezembro 05, 2008

virtualidade longe e perto


Longe e tão perto
quando uma palavra uma canção
nos toca
vinda do hemisfério sul
para o hemisfério norte
ou vice versa
e nos põe
o coração a bater forte

sente-se a atenção
que alguém emite
e como que em atracção
o outro lado sente
não resiste
em permutar a comunhão
que existe

sinal após sinal
mostram-se
transmite-se
valida-se afinal
a atenção
gerando ondas e ondas
de espera resposta
em ligação

uma interferência nos canais
um imprevisto
um rude golpe
uma desistência em não
pode acontecer…

interrompendo assim a conexão!

Portugal e o impossível


O impossível acordou cansado
farto desgastado
de um pesadelo
que afinal era verdade
viu de repente o mundo do avesso
fugir-lhe a clientela

tal era largo e fundo
o fosso entre o que via hoje
e o que vira dantes...

ficou mudo
afónico doente
embrulhado em lençol de leito
com o que via !

um povo triste que o servia
histórico desânimo
preguiça
um fado escurecido
desgraça morte dor
alimentado para o seu fulgor...

passou a ter
olhos na cara
ânimo
a querer ser correr
acreditar
fazer como fazem os melhores

e o impossível petulante
de cartola e de pantufas
em palácio encantado de fortuna
feita com a não fortuna
dos outros…

ficou errante e só
no seu luxo ró có có…

cada vez mais longe
da verdade
do país Portugal
realidade

abram-se os olhos
sintam-se os pés
mude-se de vez
o disco do desgosto
que fez do impossível
o senhor que é

reponha-se Portugal de pé
entre os maiores!

doce doce doce


Doce doce doce
um desejo contido
custoso
na hora de agir

doce doce doce
uma palavra encolhida
engolida
na hora do grito

doce doce doce
um paladar chocolate
um engate
que fica por ser

doce doce doce
que merda de vida
não sei que dizer
na hora de querer

e vou de saída
de volta pr’a rua
ao menos a chuva
intensa que cai
na pressa incontida
faz-me correr
e esquecer o doce

quinta-feira, dezembro 04, 2008

sobretudos roupa nova

Dezembro sobretudos roupa nova
uma origem comum
o espaço geográfico que os pariu

hoje como destino um outro espaço
almoço encontro desencontro
na cidade

ilusão repetida anunciada
de mostrar uma aparência sustentada
perdida já em trechos
sonetos versos dramas enseadas
passado translúcido
de estradas esgotadas

há gestos neles sorrisos tosse
encravam as palavras
na fita métrica da distância
há o menino lúdico de outrora
escorrido autêntico
feito general agora
ou outra profissão sonante
sério calculista pesado circunspecto

contam-se espingardas no olhar
galões currículos posição social

mas é tudo gente velha
com medo da morte
com medo de perder o leme e o norte
ante o tempo dos outros
que é mais novo e deles já foge

apraz naquele encontro de carcaças
mostrar alguma coisa
que ainda espante
esconder falhas taras medos
que possam tirar brilho
ao eco de inteligência gabarito
propalado

mostram-se os meninos em formato velho
que os põe desajeitados em reparos
olhares antigos em meninos velhos

que é do Chico safadão
o Paulinho das perdizes
o Pedro do garrafão
o marrão do Agostinho?

deles nem uma pálida projecção
no formato em que estão!

se eu fosse ali
não falava não fingia não ficava
apenas entrava
olhava-os bem nos olhos
nem um pensamento nem uma palavra
e saía

com lágrimas nos olhos ou sem elas
ia á praia mais próxima e fazia
como o Zorba fez
despia-me
e lentamente primeiro
depois com toda a energia
em sintonia com ventos e marés
o frio a chuva
o que quer que fosse

dançaria dançaria dançaria!

o fio de água que sou


Aproveita o fio de água que sou
curto até à foz
volume ruído visibilidade exíguos
mas em redor
em cima ao longe ao perto…

que mundo imenso
a acompanhar este fio de água
que mal se enxerga!

as flores os prados as giestas
o canto dos pássaros
o nascer do sol
enorme exuberante
que parece nascer só para o ver

o silêncio em desenho rude
de tanta forma
em pedra
em arbusto
em árvore
ornamentando o azul celeste
que se perde ao fundo
na serra agreste

foi de lá que vim
vou para perto
mas enquanto vou
este sítio em que estou
é o lugar mais belo do mundo

aproveita se quiseres
o belo mundo
deste ribeiro pequenino
faz-lhe companhia
e aquece-lhe o caminho até à foz

Publicação em destaque

Livro "Mais poemas que vos deixo"

Breve comentário: Escrevo hoje apenas meia dúzia de palavras para partilhar a notícia com os estimados leitores do blogue, espalhados ...