Nosso comentário:
Por ser Domingo, por estar um calor dos diabos, pelo menos aqui para as bandas de Lisboa e Portugal inteiro, vou ser breve no meu comentário e remeter os leitores para um texto escrito por alguém que é filho do mesmo pai que eu.
O burro da história também tive o prazer de o conhecer, pelo que achei a memória "um mimo" e digna de ser tornada pública aqui no blog.
Oxalá os leitores se deliciem com ela como eu me deliciei.
De referir que o autor do texto mora no Grande Porto, que jeito para a escrita não lhe falta a somar a talentos pessoais incontáveis.
Fica então o texto/memória sob o título,
"Um burro esperto".
Desejo a todos um bom resto de Domingo e uma primeira semana de Julho sem sobressaltos de maior.
Fiquem bem,
António Esperança Pereira
“Um
burro esperto”
Assim
o meu pai mimoseava, com respeito, um asno que adquirira ainda em pequeno. O
animal foi crescendo e, bem tratado, tornou-se num belo exemplar. De compleição
física média e aspeto saudável, denotava certa altivez e um ar gozão, talvez
mesmo trocista. Não imagino se essa qualidade era nata ou copiada do patrão, a
verdade é que olhando para ele de frente, se deduzia com relativa facilidade
tratar-se de um ser feliz, orgulhoso de si próprio.
O
perfil, que pela rama tracei, ficará melhor desenhado com as 2 peripécias que
passo a citar:
Quando
o animal começou a ser utilizado nos serviços agrícolas, pouco mais fazia do
que acarretar pequenas cargas e tirar água à nora. Nesta atividade é que viria
a colher louros, desfrutando de rasgados elogios por todos quantos tiveram o
privilégio de assistir. Mal era colocado em posição, o bicho arrancava a tal
velocidade que as pessoas da rega viam-se aflitas para acudir ao vultoso caudal
de água. Considerando que a passo firme se adquire uma velocidade de 6 Km/h,
certamente o burrico puxaria os copos da nora à velocidade aproximada de 10
Km/h. Um verdadeiro espetáculo. Mas não esqueçam a esperteza do bicho, que não
era subserviente. Duas horas volvidas, o pessoal da rega ficava sem água. Iam
ver e o animal estava parado! A princípio tentaram de tudo, mas… nem mais um
passo; se lhe pusessem pão-de-ló na frente, não se demoveria. Que nobreza!
Tratando-se
de um “irracional”, para cúmulo sem alma, o que pensaria ele? “Tratam-me bem,
acho que devo retribuir, mas há limites”. Os humanos foram-se habituando e já
sabiam que, às duas horas (mais coisa menos coisa), a nora deixava de funcionar
e o burro ia para descanso. E não julguem que no período da manhã era assim e
que havia repetição no período da tarde; nada disso, o trabalho do dia estava
feito! O meu pai achava-lhe piada e mais o gabava.
Outra
caraterística interessante tem a ver com a carga que transportava. Se fosse
coisa ligada à lavoura, ele achava que era seu dever ajudar e não se fazia
rogado. Se alguém quisesse cavalgá-lo… aí o tipo afinava! Que pensaria? “Estes
humanos, que nem aos calcanhares me chegam, vão cavalgar mas é o…”Era
respeitador e não nasceu na zona do Porto, pelo que raramente terminava
raciocínios malévolos, mas deduz-se o que gostaria de dizer. Claro que também
aqui merecia gabanços do patrão.
Estava
eu de férias, junto do meu pai e do quadrúpede, quando sou instado a tentar
“amansar” o dito, tentando viajar até junto da Ribeira das Cabras (Pinhel),
onde tínhamos uma vinha. De certeza que havia malandrice no desafio, mas de
boa-fé aceitei, até porque já em tempos tivera alguma experiência (amadora) de
equitação. Subi no animal e até ao portão de saída havia uma rampa. Pois sim,
nem se mexeu. Para não ficar em pouco e como a distância ao portão (onde tinha
de descer para o abrir) era pouca, decidi levá-lo à rédea. Lá seguia atrás de
mim e de tal modo apressado que várias vezes me empurrou. Que pensaria? “Este
gajo vai para os Rangers e nem andar sabe”. Eu ia satisfeito e muito
convencido. Após o portão pus-me a cavalo e tudo correu bem durante cerca de 50
metros; quem visse o par, por certo ficava maravilhado; ambos garbosos e cada qual
desempenhando o papel que lhe cabia. No final dos tais 50 m começou a descida,
rumo à ribeira. Então o sacana decidiu vingar-se e optou por ir a trote,
encostadíssimo à berma da estrada. Seguia pela direita (a ascendência não era
inglesa), mas tão encostado às paredes que eu carregava duas preocupações: A de
proteger a perna direita e a de não cair, hipótese por demais evidente. Mas
nada de muito anormal sucedeu, certamente porque a intenção do burro não mirava
vinganças de que a sua consciência viesse um dia a arrepender-se. Agora um
parêntesis: Já andaram de burro, a trote? Parece que as tripas andam para cima
e para baixo, nada que se assemelhe ao trote do cavalo.
Cheguei
à entrada da citada vinha amarelo, mas feliz por ter chegado; ainda mal refeito
do susto, logo bolei maneira de sair airoso: Seguia-se uma rampa bastante
íngreme, agora é que era! Pois, o bicho não estava a dormir, nem sequer
cansado, e também viu a rampa! Nem mais um passo. Desci e levei-o um pouco à
rédea. O que pensaria? “Afinal o patrãozinho não é burro de todo, já percebeu”.
Voltei a subir e o resultado não mudou! Só tinha uma solução, regressar ao
ponto de partida. Tudo correu bem até recomeçar a subida. Aí parou e com o seu
ar de gozo deve ter pensado: “Enganei-me, ele não percebeu”.
Conclusão:
Apareci com o burro à rédea; o meu pai ria-se a “bandeiras despregadas”.
Um
motor de rega viria substituir o animal que, embora com desgosto, foi cedido a
alguém de confiança; em princípio, continuaria a ser tratado convenientemente. Deixou
saudades.
Leopoldo
Pereira