quarta-feira, outubro 31, 2007

algum "sucesso" feminino

Vai menina estudante bem mostrada
capa e batina pastinha a tiracolo
tudo a preceito
direita importante

em grande centro comercial
Lisboa acompanhada
dos humildes pais desajeitados
provincianos
atrelados a sua excelência a filha modernaça

que para além da mesada
outros auxílios colaterais e bom sustento
muito suor para a trazerem tão lustrada

é ela afinal quem os conduz
ao lado atrás bem pequeninos
rendidos babados
por tanto talento mostrado pela "menina"

os antigos escravos iam mais direitos
menos vergados que estes pais babados

o quadro que contemplo
faz-me lembrar noutro contexto
outra história feminina de sucesso

a filha de um pai da minha terra
que até deixou de trabalhar
tanto era o dinheiro que ela lhe enviava
vestia bem e o homem pobre que era
trabalhador

deixou de o ser
bastava-lhe administrar
também gastar
o dinheirinho vindo da capital
remetido pela menina em vale postal

com ar bem chique
um salto alto arregaçado
e embrulhada em astracã
aparecia apenas pelo natal

era então que o pai tinha que cumprir
com boca aberta e língua de fora
acompanhando humildemente
aquela deusa que gerara um dia

ela lá em cima no primeiro andar
lustrosa oxigenada petulante
ele mais no rés do chão
fardado de fato e de gravata
para mostrar com galhardia
às gentes da terra
o quanto a família progredia

quarta-feira, outubro 24, 2007

três partes em nós

Sinto o pescoço aliviado
e o rosto
com o ar entrando
enchendo os pulmões e tudo de ar

o próprio olhar em inspiração
se acende
como um farol
na direcção de terra céu e mar

fico completamente onde estou
enraizado
o que é sólido sustentado e dá paz

até os problemas mais complexos
perdem intensidade quando se assim está
ficam diluídos
bem longe bem fora deste corpo
que parece envolver-se recolher-se inteiramente
em luz e aura protegido

percebe-se perfeitamente neste respirar centrado
a separação que há
entre o estado de paz
interior
e a anormal agitação
exterior

percebe-se também claramente
que há três partes em nós
com entendimento diferente

a mente
inteligente e exigente
que agita flui com a razão
que ela própria escolhe e aplica

o espírito
que é luz distanciamento
uma paz profunda
que leva a tudo o que sai do perto
do comum entendimento

e o corpo
invenção maravilhosamente bela
forte
trave mestra resistente
que tudo suporta tudo sustenta

sexta-feira, outubro 19, 2007

moda indiferença

Olho para ti sério circunspecto
céptico
porque já sei que não vais olhar

ainda esboço um gesto
qual impulso desejo de tocar
mas recuo
porque sei que vais rejeitar
e amuo

ah indiferença gelada
teatro da vida
sinto-te tão só como eu me sinto
tão carente de um olhar como eu me sinto

moda carapaça atrás de carapaça
personagem atrás de personagem
tarda encontrar-se a liberdade certa

porque nesta vida o que se sente é real
há que seguir o impulso que encoraje a gente
um impulso vital determinado
que tenha resposta do outro lado

até lá
até esse encontro com a liberdade certa
ao menos digam olá
empurrem-se olhem-se toquem-se

mas não matem o outro
deixando-o só
ficando só como ele
com tanta indiferença

porque matar o outro é matarmo-nos a nós

terça-feira, outubro 16, 2007

holocausto em vez de amor


Porque é tão fácil de vender
ao telespectador
o holocausto o horror (?)

até se chama outra gente para ver
e partilhar
seja a guerra a acontecer
mesmo em directo
ou os efeitos dela com todo o pormenor

o fumo a morte
o justo e o injusto
a perecer
o barulho bombardeio
vida viva a sofrer e a morrer
um assalto à mão armada
uma criança violada

e aconchega-se a família
em frente ao televisor
"anda vem ver"
chama-se o filho a mulher
ou quem aparecer

se for amor pelo contrário
o que estiver a acontecer
tem que se esconder

alguém grita "proibido"
em gestos violentos repressão
um sem fim de ideias tontas
ciúme raiva rejeição
um "tira daí não podes ver"

humana faceta estranha
este prazer mórbido de consumir
gostar de ver
tanto sofrer

aceitam-se os horrores da violência
com facilidade
rejeitam-se os gestos mais simples
mais ingénuos
mais génesis descoberta
do amor
da felicidade

partida e morte

A ti que querias partir
eu disse
fica
tu ouviste
e não quiseste ficar

a ti que partiste
eu disse
volta
tu ouviste
e não quiseste voltar

a ti hoje que morreste
eu não disse
fica
porque mesmo que quisesses
não poderias ficar

a ti hoje ao enterrar
eu não disse
volta
porque mesmo que quisesses
não poderias voltar

ai coração coração
tanta perda tanto dano
vida e morte lado a lado
neste engano desengano

terça-feira, outubro 09, 2007

muralha ou abertura

Ter cuidado é bom
faz falta
defende-nos de tantas situações perigosas
vias e propostas sinuosas

mas pode levar a um excesso de zelo
de temor
que fecha o coração ao sentimento
ao amor

e entre ficar só com tanto medo
rodeado de altos muros preconceitos
muralha intransponível em degredo
e baixar um pouco a ponte levadiça
abrir a porta forte isolamento
ao "inimigo" forasteiro

porque não avaliar primeiro
se as setas que ele mostra
são de veneno ou de cupido

depois sim
ou ter cuidado
fechar as portas
e preparar a guerra

ou abrir à novidade
quem sabe uma aliança
um novo sentido
para uma vida de exclusão sempre fechada

o tempo a bruma

O tempo esconde a espaços
o horizonte
de toda a recordação

tal como a bruma
o faz com a paisagem
que só deixa voltar a ver
quando levanta

o tempo é como a bruma
esconde arrefece
torna invisível o que está lá

mas há uma coisa
que nem tempo nem bruma
nem coisa nenhuma
pode apagar

a alma da gente

que quando se encontra
quando se quer
quando se entende
quando se dá
fica junto eternamente

segunda-feira, outubro 08, 2007

o amor dos elementos

Estou aqui
lugar de mais ninguém
com ruídos exteriores
ruídos interiores
numa história hoje por cumprir

o tempo que passou por mim
tem um aspecto de fogo
que ardeu
de rio que correu

como as cinzas que ficam das árvores queimadas
como o leito do rio
seco por falta de chuva

mas a história continua
aqui mesmo neste instante
estou no sítio a jusante
onde a água nunca falta

mais que isso

sou um sítio poupado
à seca ao fogo
pelo amor dos elementos

anjos música

O anjo certo na música certa
o momento bom
o céu numa luz ténue
de fim de tarde

num recanto aconchegado
de uma casa interior
azul celeste
com trepadeiras finas acetinadas

uma dança de anjos
leve suave interminável
um entendimento perfeito
lânguido e doce

um momento único
gravado na memória
do tempo

dois corpos com asas
voando
ontem agora sempre
nas notas musicais
sem ruído

metáfora do prisioneiro

A chave da vida está
em não ficar-se prisioneiro
muito menos torturado
porque a tortura dói
dá mesmo cabo da gente

e a repetição da violência
pelos guardas prisionais
carcereiros outros que tais

com a voz o olhar o passo
vigiados controlados
em pouco espaço
enfraquecem
trazem cansaço

a liberdade é lá fora
todo o prisioneiro sabe isso
mas tem que sentir-se dentro
primeiro

depois é só abraçá-la
e substituir a clausura
por um imenso paraíso
bem longe do carcereiro

domingo, outubro 07, 2007

amor e percentagem

É fácil de falar
é fácil de escrever
dizer que o sofrimento
se deve à percentagem
exagerada
que se põe no que se ama

num homem
numa mulher
numa criança
numa causa

se fosse verdade
(só uma questão de percentagem)
era só dizê-lo à sociedade
e ensiná-lo a quem ama

tirava-se então
um pouco de coração
à namorada ao filho ao amante
ao amigo
a um qualquer dogma

e não se matava
nem se morria todos os dias
por tanta entrega
à tal percentagem coração exagerada

mas será que o coração quando ama assim
cem por cento apaixonado
tem atenção
nem que seja um bocadinho
para ligar às percentagens racionais de que falamos?

sábado, outubro 06, 2007

euro em vez de escudo

Pela primeira vez
ao receber uma factura em euros
eu português entendi
que um ciclo terminava

senti mais e mais morrer os meus avós
meus pais

se é para bem de todos nós
que seja
mas como vou contar aos filhos
e aos netos
as minhas tropelias
o desviar necessário de uns tostões
para pequenos vícios desnecessários
do bolso de meus pais

e explicar que dez tostões
poupados no autocarro
podiam virar poupança útil

ou contar
que ir de Lisboa à Beira-alta
no combóio correio
em vez de ir no sud express
eram cinemas no mealheiro
bolos livros chocolates

é assim como quem fala português
e de repente
se põe a falar russo ou chinês

mas se é melhor assim que seja

só receio
que tantas histórias nossas fiquem por contar
não fico contente
e devia ficar

gentes de Portugal
se depois de novecentos anos
chegámos aqui
não vamos desanimar
que treta
os espanhóis também perdem a peseta

vamos pois continuar

aridez

Quanto mais escrevo
mais aprendo
que se é duro
semear o trigo
ou carregar tijolos
ou moldar o vidro

mais duro é semear flor
e colher cardos

ou plantar amor
onde só há pedras
numa nesga de leira
por lavrar
em terra agreste

as palavras e o que significam

Será que as palavras se agarram ao que
significam
são ou não são bonitas
conforme a mensagem que transmitem?!

o mar é mar e a palavra é linda
porque gostamos do mar

e céu também
e mãe
e flor
e amor

se estas palavras invertessem o sentido
se por exemplo
"odeio diabo morte negra"
quisessem dizer
"amo mãe vida jardim"

odeio
diabo
morte
negra

deixariam de ser palavras feias
e passariam então
a ser bonitas?

se eu pudesse adivinhar

Se eu pudesse adivinhar
que as tuas mãos me queriam
estendia-te as minhas

se eu pudesse adivinhar
que o teu coração me queria
abria-te o meu

se eu pudesse adivinhar
que querias ser minha
eu seria teu

Publicação em destaque

Livro "Mais poemas que vos deixo"

Breve comentário: Escrevo hoje apenas meia dúzia de palavras para partilhar a notícia com os estimados leitores do blogue, espalhados ...